No dia 17 de outubro de 1945, uma multidão, que os mais animados acreditam ter sido formada por “milhões de pessoas”, juntou-se na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo da Argentina. Ela pedia a libertação do general Juan Domingo Perón, que fora preso dias antes pelos militares. O calor era tanto que muitos homens tiraram a camisa, dando origem à expressão “descamisados”. O apelo popular deu certo e Perón retornou a seus cargos no governo, entre os quais o de vice-presidente. Às 23 horas daquele dia, discursou da sacada da Casa Rosada para uma multidão. “Este é o mesmo povo que há de ser imortal, porque não há perfídia nem maldade humana que possam estremecer este povo, grandioso em sentimento e em número”, disse. A partir de então, 17 de outubro tornou-se uma das datas mais celebradas na Argentina, com atos massivos na Praça de Maio. É o “Dia da Lealdade” dos peronistas, que, desde 1983, governaram o país em dois de cada três anos.
Exatos 72 anos depois da apoteose peronista, na terça-feira 17, o único barulho que se ouvia na praça ao cair da noite era o ronco do motor de um ônibus turístico. A Casa Rosada, afinal, é ocupada por um presidente não peronista, Mauricio Macri, que preferiu participar de um ato político mais modesto no Clube Ferro Carril Oeste, na periferia de Buenos Aires, na hora do almoço. Macri discursou em um ginásio de esportes em apoio aos candidatos da sua coalizão, a Cambiemos, que neste domingo, 22, disputa as eleições legislativas. Em uma fala de dez minutos, confirmou ser a antítese de Perón. Frisou, sem um traço de emoção, que não acredita em super-heróis nem em líderes messiânicos. “Os primeiros a acreditar em nós foram os vizinhos de Buenos Aires”, disse Macri.
A troca de “povo” por “vizinhos” no discurso presidencial é sintomática da mudança em curso. Não se vê mais a empolgação das massas. Macri, que assumiu o governo em dezembro de 2015 após obter 51% dos votos no segundo turno, é a exceção em uma longa tradição personalista. Seu rosto nem sequer aparece nos cartazes dos seus candidatos em Buenos Aires. “O que estamos presenciando é a supressão da política como a conhecíamos, uma era pós-ideológica. É difícil acreditar que isso possa vingar em uma sociedade como a nossa”, diz o historiador Fernando Devoto, da Universidade Católica Argentina (UCA). Se completar seu mandato, daqui a dois anos, Macri será o único não peronista a fazê-lo desde Marcelo Alvear, em 1928 — descontados os dois períodos de ditadura (1966-1973 e 1976-1983).
Alheio a esse histórico, Macri se diz confiante. Ousa até afirmar que se reelegerá em 2019. A aprovação de seu governo está em 57%, um índice que sua antecessora, a peronista Cristina Kirchner, jamais alcançou. Se os resultados das eleições primárias realizadas em agosto se confirmarem, a Cambiemos aumentará o número de cadeiras de quinze para 23 no Senado, de um total de 72. Na Câmara dos Deputados, a expansão será de 86 para 104, de 257 assentos. A Cambiemos deve ganhar fácil a vaga de deputado da cidade de Buenos Aires e, segundo as pesquisas, está alguns pontos porcentuais à frente da agrupação de Cristina Kirchner, a Unidade Cidadã, na disputa pelo Senado na Província de Buenos Aires, que concentra 40% do eleitorado argentino. “Ainda que a Cambiemos não obtenha maioria nas duas casas, um bom resultado daria mais fôlego ao governo Macri”, diz a economista Patrícia Krause, da seguradora de risco Coface, em São Paulo.
Os índices econômicos dão poucas pistas sobre a alta popularidade do presidente. Em geral, todos tiveram uma leve melhora em relação a 2016, mas continuam ruins. A taxa de desemprego segue alta, em 8,7% (ainda que menor que a brasileira, de 13%). O PIB se contraiu 1,7% no ano passado e, neste ano, deve crescer 2,7%. A inflação está em excruciantes 23% ao ano. A taxa de juros bate em 26%. A pobreza, em 28%. “A condição de vida melhorou um pouco, mas para um avanço real ainda seria essencial criar empregos de qualidade”, diz o sociólogo Eduardo Donza, que mede a pobreza no Observatório da Dívida Social da UCA, em Buenos Aires.
Um fator que explica o vigor macrista é a régua usada pelos argentinos para medir a realidade. “Não se pode explicar Macri sem falar de Cristina. O presidente é um reflexo do cansaço das pessoas com o kirchnerismo”, diz o historiador Luis Alberto Romero. No segundo mandato de Cristina, a economia estancou e não foram criados empregos no setor privado. Como tentativa de compensar, os governos provinciais passaram a contratar muito mais funcionários públicos. No plano federal, aumentaram-se os subsídios em passagens de transporte, contas de luz e gás. Também foram reforçadas assistências para aposentados e para os mais pobres. Criou-se até uma versão do programa brasileiro Bolsa Família. Os gastos públicos, claro, ampliaram o déficit fiscal e levaram o governo a emitir mais moeda, piorando a inflação.
Macri cortou essa cadeia nefasta. Ele se recusa a imprimir mais dinheiro, prática que é a principal causa de inflação no mundo. Para cobrir o déficit de 5,2% nas contas públicas, prefere pedir emprestado no exterior, opção que se tornou possível depois que o presidente fez um acordo com os fundos abutres, que não tinham aceitado a renegociação da antiga dívida argentina. Com isso, desde o início de 2016, a Argentina foi o país emergente que mais se endividou no mundo: 42 bilhões de dólares.
Trata-se de um tema sensível para um povo afeito ao discurso nacionalista e alérgico aos tempos das imposições financeiras dos credores internacionais. “O patamar de endividamento ainda está baixo, em torno de 30% do PIB, mas emitir títulos nessa velocidade não é algo que se possa fazer por mais de três anos”, diz o economista Matias Carugati, da consultoria Management & Fit, de Buenos Aires. Para cortar o problema pela raiz, será necessário reduzir o buraco no déficit público. A meta do governo é diminuí-lo em 1% a cada ano, por meio de melhoras na gestão da máquina pública e do aumento da arrecadação de impostos.
A jogada do presidente consistiu em se aproveitar da abertura do mercado de crédito internacional e do interesse dos investidores pelos juros altos da Argentina (um problema que, por outro lado, sufoca a produção nacional) para impulsionar dezenas de obras públicas e, assim, garantir o apoio político de que necessita. “O plano de obras públicas é muito abrangente e está transformando a paisagem de vários lugares pela primeira vez”, diz Orlando D’Adamo, diretor do Centro de Opinião Pública da Universidade de Belgrano, em Buenos Aires. Para acabar com as enchentes e fornecer água potável, foram anunciadas 102 obras. Na área de transportes, estão sendo construídos estradas e corredores de ônibus, que têm plataformas cobertas e elevadas. Na periferia de Buenos Aires, o primeiro deles foi concluído em maio e tem 16 quilômetros. Fica no bairro de La Matanza, antigo reduto do kirchnerismo. “Há obras por todos os lados, e muitas já foram finalizadas. Até então, essas coisas sempre ficavam na promessa dos políticos. Nunca aconteciam”, diz o portenho Sérgio Fernandez, dono de um restaurante em La Matanza, que usa o metrobus, nome local para os corredores de ônibus.
Em abril, o presidente também prometeu a construção de 120 000 casas populares, para amenizar um déficit estimado em mais de 3 milhões de habitações em todo o país. “O kirchnerismo era mais nacionalista e tinha aversão ao endividamento externo. Macri não tem esse pudor e está emitindo muita dívida para tirar projetos da gaveta”, diz Thomaz Favaro, diretor associado para o Cone Sul da consultoria de risco político Control Risks, em São Paulo. Para uma sociedade tão propensa ao nacionalismo e ao populismo, chama atenção a possibilidade de que a mera sensação de que o governo está fazendo algo e de que a situação econômica vem melhorando, apesar de não estar boa, seja capaz de determinar o voto de milhões. Se não houver avanços sociais e econômicos mais rápidos, porém, esse fenômeno talvez só se mantenha enquanto a era desastrosa do kirchnerismo estiver viva na memória dos argentinos.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2017, edição nº 2553