Michel Temer acaba de cravar outro ineditismo: além de ser o primeiro presidente denunciado por corrupção no exercício do cargo, agora é o primeiro a ter o sigilo bancário quebrado. Conforme revelou o site de VEJA, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a quebra de seu sigilo bancário no contexto da investigação que apura se Temer recebeu propina em troca da edição de um decreto na área de portos. Nas palavras do ministro, há indícios de “delitos financeiros e contra a administração pública”. Para elucidar o caso, Barroso também ordenou a quebra do sigilo bancário de outras cinco pessoas — entre elas, o advogado José Yunes e o coronel João Baptista Lima Filho, ambos amigos de longa data do presidente. Em trecho ainda inédito de seu despacho, Barroso cita apuração da Polícia Federal (PF) para dizer que os dois “podem ter servido como intermediários para o recebimento de vantagens indevidas”.
A medida — que Temer, em meio a profunda irritação, qualificou como “ação política” — decorre da suspeita da PF de que “Limão”, como o coronel gosta de se chamar, seja um laranja do presidente. Em maio do ano passado, a Polícia Federal deu uma batida na empresa e no apartamento do coronel e apreendeu planilhas, bilhetes, recibos de pagamentos, registros bancários. O material está sob a análise dos investigadores, mas já trouxe a evidência de que o coronel, além de amigo, tinha interferência em operações financeiras do presidente, em campanhas e em negócios privados.
O coronel Lima entrou no centro das suspeitas depois que um delator da JBS, Ricardo Saud, contou aos procuradores que, na campanha de 2014, mandou entregar 1 milhão de reais em dinheiro vivo nas mãos do coronel, “conforme indicação direta e específica de Temer”. Em sua proposta de delação, recusada pelo Ministério Público, José Antunes Sobrinho, então dono da Engevix, fez denúncia idêntica: disse que o coronel lhe pediu 1 milhão de reais para “suprir interesses de Temer”. O achaque teria ocorrido depois que a Engevix — em parceria com empresa da qual o coronel é sócio — ganhou contrato de 162 milhões de reais na Eletronuclear, um feudo do MDB de Temer. Segundo Sobrinho, o coronel usava um eufemismo para reclamar quando o dinheiro não entrava: “Estamos esperando a doação”.
A pedido da PF, o ministro Barroso mandou anexar ao inquérito em curso uma suspeita antiga e muito similar, que foi noticiada por VEJA em 2001. Na época, a Justiça recebeu, no âmbito de um processo de divórcio, a contabilidade de um suposto esquema de propina no porto de Santos, área de influência de Temer desde o século passado. Segundo uma das partes do processo, a propina era rateada entre Temer, o coronel Lima e o ex-presidente da Companhia Docas do Estado de São Paulo Marcelo Azeredo. Temer, ainda segundo as acusações contidas no processo judicial, ficaria com 50% do butim, e os outros dois, com 25% cada um. Uma das empresas do esquema no Porto de Santos seria a Rodrimar, a mesma que está sendo investigada agora no decreto dos portos. Ou o caso vem de longe ou os investigadores estão diante de uma tremenda coincidência.
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Temer nega que tenha recebido propina, defende a inocência do coronel e diz ser vítima de uma “urdidura” para desestabilizar o seu mandato. A VEJA, o coronel Lima disse que não embolsou um centavo sequer: “Esse dinheiro não foi destinado a mim”. Os investigadores querem descobrir a quem se destinou.
O presidente e o coronel são amigos há mais de trinta anos. Conheceram-se quando Temer assumiu a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, em 1984. Lima, então major, era seu ajudante de ordens. Em 1986, quando Temer disputou pela primeira vez uma eleição para deputado federal, Lima ajudou-o a reunir cabos eleitorais e votos dentro da Polícia Militar. Desde então, o coronel administra as campanhas eleitorais de Temer. A relação entre os dois estreitou-se de vez quando Lima desempenhou o papel de bombeiro na crise matrimonial que resultou, em 1987, na separação entre Temer e sua primeira esposa. O coronel ganhou a confiança de todos e aproximou-se, inclusive, das filhas do ex-casal. As famílias passaram a se frequentar. Em 1999, Temer escreveu este bilhete à esposa do coronel: “Rita, prezada amiga, no seu aniversário, cumprimento-a fazendo as seguintes afirmações: a) O Lima deve muito a você e ao seu temperamento calmo e suave; b) Sendo assim, o Lima pode ajudar-me muito; c) Portanto, devo duplamente a você: primeiro porque pacifica o Lima; segundo, pela sua dedicação à construção da minha casa. Grato e parabéns! Michel Temer”.
O coronel retribuía como podia e virou um “faz-tudo” de Temer, segundo um amigo do presidente que pediu para não ser identificado. A polícia recolheu, no escritório do coronel, recibos de pagamentos da reforma da casa de uma das filhas do presidente. Assessores de Temer dizem que o coronel pode realmente ter quitado uma ou outra despesa da família, mas foi reembolsado. Em entrevista a VEJA em junho do ano passado, Temer saiu em defesa do amigo: “A Polícia Federal entrou na casa dele e no escritório. Eu não tenho notícia do que aconteceu, mas dizem que saiu com três ou quatro cartões de visita. Sabe para quê? Para tentar fazer uma vinculação comigo, para tentar me incriminar”. A vinculação é inevitável. No escritório do coronel, a polícia também achou papéis nos quais Lima registrou o repasse de dinheiro a sessenta políticos nas eleições de 2002, num total de 340 000 reais em valores da época.
“O Lima coordenava minha campanha. Isso foi em 90, 94, 98, 2002 e assim por diante, 2006, 2010, em todo o período. Fez uma relação de muita amizade comigo, muita amizade. Ele está sofrendo as consequências de ser meu amigo”, afirmou Temer na mesma entrevista a VEJA do ano passado. Com o tempo, o coronel tornou-se um empresário bem-sucedido. As empresas das quais é sócio amealharam contratos de pelo menos 300 milhões de reais com órgãos públicos desde 2009, considerando contratações diretas e indiretas. O ano de 2011 foi especialmente generoso: enquanto Temer assumiu a Vice-Presidência da República, o coronel virou sócio da Argeplan, empresa para a qual trabalhava havia décadas. A Argeplan tem uma carteira estrelada de clientes. Em 2010, ganhou uma licitação na Valec, presidida na época pelo MDB de Temer, orçada em 26 milhões de reais. A Argeplan apresentou o maior preço, mas venceu o certame.
Com o sucesso empresarial, o coronel amealhou um bom patrimônio. É dono de um apartamento avaliado em mais de 2 milhões de reais e de uma fazenda no interior de São Paulo, que, na semana passada, foi invadida pela terceira vez por integrantes do movimento sem-terra, para os quais a propriedade pertence de fato a Temer. Na época da primeira invasão, em 2016, o coronel e o presidente conversaram por telefone depois que o MST deixou a fazenda. Segundo a PF, houve onze chamadas entre os dois, pelo aplicativo WhatsApp, de abril de 2016 a 12 de maio de 2017, cinco dias antes de estourar a delação da JBS.
No âmbito do inquérito sobre o decreto dos portos, a polícia já colheu os esclarecimentos, por escrito, de Temer. O coronel ainda não prestou depoimento, alegando motivos de saúde. Lima tem câncer e passa por tratamento de quimioterapia. Em dezembro, foi obrigado a extrair um rim e já sofreu um AVC. De acordo com o atestado médico assinado por Rodrigo Barbosa Thomaz, responsável pela área de neurologia do Hospital Albert Einstein, o quadro é “grave” porque o coronel toma medicamentos que o “vulnerabilizam quanto ao risco de recorrência de acidente vascular cerebral”.
Segundo assessores do presidente, a última vez que Temer esteve com o coronel foi antes da cirurgia. Desde então, o presidente monitora de longe, com a ajuda de terceiros, o quadro clínico do amigo. Sério, fechado e agressivo na defesa de seus interesses, Lima não se mostra chateado com o distanciamento do parceiro. “O Michel sempre foi muito atencioso comigo. Essa amizade é uma coisa pura, não tem outros interesses.” As investigações apuram se isso é verdade.
“Esse dinheiro não foi destinado a mim”
Recluso em sua residência em São Paulo, o coronel João Baptista Lima Filho, de 74 anos, explicou por que não atende há nove meses às três intimações feitas pela Polícia Federal para que preste depoimento. Na manhã da quarta-feira 7, ele conversou por telefone com o repórter Hugo Marques, da sucursal de VEJA em Brasília. Amigo do presidente Michel Temer há mais de trinta anos, o militar aposentado contou que está doente e que se sente injustiçado com as acusações de recebimento de propina e caixa dois que lhe foram feitas ao longo das investigações da Operação Lava-Jato. Ele define a amizade com o presidente da República como “uma coisa pura, sem interesses”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O senhor é acusado de receber pagamentos em nome do presidente Michel Temer. Eu queria dizer que estou em minha casa, não tenho condição de entrar nesses méritos aí. Estou sob um stress muito forte. Não tenho como entrar, começar a discutir essa coisa toda. Peço que o senhor publique o que quiser publicar, eu não tenho como interferir nessas coisas.
Por que o senhor não tem condições? Meu estado está muito precário. Eu sofri uma intervenção violenta. Já tinha sofrido no meio do ano passado. Agora, em dezembro, tive de tirar o rim integralmente. Estou sendo submetido a quimioterapia. Então, o senhor imagina como é que eu estou aqui, estou estraçalhado, viu?
Na Argeplan foram encontradas planilhas de pagamentos de despesas eleitorais. Era caixa dois? Não, não, não. O que foi encontrado lá é uma cópia daquilo que foi entregue ao Tribunal Eleitoral em São Paulo. Exatamente, ipsis litteris, não tem nada fora disso aí.
O senhor é acusado pela Engevix e pela JBS de receber 1 milhão de reais de cada uma em nome do presidente Temer. No caso da Engevix, a empresa já disse que nunca fez nenhum aporte comigo, não tem nada. Se o senhor procurar no departamento deles lá, que trata com a imprensa, eles publicaram isso aí, desmentindo isso tudo, a meu favor. Falam da empresa também, da Argeplan, que não existiu esse pagamento.
E no caso da JBS? Também é outra coisa que, se examinar os documentos, o senhor vai ver lá no anexo feito pelo Ricardo Saud que esse dinheiro não foi destinado a mim. Eles tentaram proteger uma outra pessoa e colocaram meu nome nesse assunto.
O senhor nunca recolheu dinheiro em nome do presidente Michel Temer? Não, não, não, não.
Qual é hoje a relação do senhor com o presidente? Em toda a convivência com Michel, ele sempre foi muito atencioso comigo, muito carinhoso comigo. O senhor deve ter amigos que preza. É essa a amizade, é uma coisa pura, não tem outros interesses que não a pura amizade.
Por que o senhor se recusa a depor à Polícia Federal? Eu estou com proibição médica de entrar em stress. Estou com placas grandes na carótida. Já tive um acidente, aliás, dois acidentes vasculares, e, se eu passar por stress, essa placa vai se desprender e tomar o destino do cérebro. Então, não posso aumentar o cortisol, não posso ter a adrenalina aumentada. Se eu passar por stress, isso vai ocorrer, eu vou ter um AVC violento. O médico insiste comigo: “Não se submeta a stress, porque você está numa linha de perigo”.
Qual é a sua rotina? Estou em casa. Faz oito meses que não boto o pé fora de casa. Vou ao hospital, venho para casa, não tenho condições de sair. Estou proibido de fazer qualquer exercício físico.
No inquérito da Polícia Federal há fotografias nas quais o senhor aparece pescando, viajando pela Itália, divertindo-se. Não é essa situação que o senhor está vivendo? Não, não, não. Eu não tenho saído. Faz oito meses que estou aqui recluso, dentro da minha casa. Eu estou muito debilitado.
O que o senhor tem a dizer sobre a versão espalhada pelo MST segundo a qual o presidente Temer é o verdadeiro dono da fazenda que está em seu nome? Não existe isso. Isso foi uma criação.
Como analisa as suspeitas levantadas contra o senhor e o presidente Temer? Olha, eu tenho uma formação que transcende essas coisas, eu não consigo ter uma explicação. Só o tempo é que vai explicar o que houve.
Com reportagem de Laryssa Borges e Ana Clara Costa
Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573