Fortaleça o jornalismo: Assine a partir de R$5,99
Continua após publicidade

A utopia caiu na real

Os jovens presos nas manifestações queriam derrubar a ditadura; mais de 30 anos depois, assumiriam o poder, mas seriam presos de novo – agora, por corrupção

Por Luisa Bustamante Atualizado em 4 jun 2024, 16h44 - Publicado em 29 dez 2017, 06h00

Mesmo agora, com a internet disseminando ideias, atitudes e movimentos por todo o planeta em tempo real, o Brasil às vezes demora a engatar a primeira. Imagine em 1968, quando as notícias corriam, quase lentamente, pelo rádio e pela TV. Enquanto o Ocidente, sobretudo, era varrido pelas mentes e pelos discursos da contracultura, aqui (como, aliás, em toda a América Latina vergada sob regimes totalitários), tirando uma ou outra manifestação artística nas grandes cidades, o vento de renovação demorou a soprar. No Brasil de 1968, a ditadura militar transpunha a fronteira entre envergonhada e escancarada, na qualificação definitiva do jornalista Elio Gaspari. A mobilização dos jovens, quando havia, concentrava-se em derrubar o governo. “A visão marxista privilegiava a luta de classes. Qualquer movimento alheio a isso era considerado secundário, enfraquecedor. A ideia dominante na esquerda era que as bandeiras erguidas pelos protestos de 1968 não tinham expressão”, diz o jornalista Fernando Gabeira, que sabe do que está falando: foi guerrilheiro, preso político, exilado e, depois, deputado federal. Hoje, é um “liberal não radical” que se afastou dos partidos.

A utopia daqueles tempos descambou em luta armada, mortes, perseguições e tortura. Foi ali que nasceu também, empunhando a bandeira do idealismo e da igualdade social, uma nova geração de políticos. O 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes, convocado para 12 de outubro em Ibiúna, no interior de São Paulo, acabou antes de começar, com cerca de 1 000 estudantes presos — entre eles José Dirceu e José Genoino, líderes universitários de então. “O desmantelamento do congresso da UNE assinalou o fim do movimento estudantil, já em declínio, e criou condições para a migração de militantes para as organizações empenhadas na luta dos grupos armados contra a ditadura”, afirma Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense. Dirceu e Genoino seguiram esse caminho, foram presos e exilados. Quando enfim as eleições voltaram a ser livres, os dois, próceres do Partido dos Trabalhadores, ocuparam altos cargos no governo que se propunha a instaurar uma nova ordem no país. Triste epílogo das mazelas que predominam até hoje na política nacional: acabaram, ambos, presos de novo — desta vez por vexaminosa corrupção. Dirceu pegou dupla pena, no mensalão (sete anos e onze meses) e na Lava-Jato (trinta anos e nove meses). Indultado no primeiro, aguarda recursos do segundo em liberdade, de tornozeleira. Genoino foi condenado no mensalão a quatro anos e oito meses de cadeia, cumpriu oito meses e teve a pena extinta em 2015.

“Deu errado porque muitos políticos se utilizaram de alianças com setores atrasados, adeptos de mecanismos antirrepublicanos. O PT surgiu propondo uma visão ética de fazer política. Concluído o longo período do partido no poder, ficou claro que se tratava da mesma forma antiga de sempre”, comenta Gabeira. Aarão aponta um paralelo na trajetória de Dirceu e companhia, da guerrilha ao Congresso: a tendência a preferir o caminho mais curto. A luta armada era um atalho para a tomada do poder. As alianças sem princípios foram, de novo, um desvio para ocupar o governo e nele se perpetuar. “Abandonaram princípios e rasgaram programas para trilhar esse caminho mais rápido. A mixórdia que se seguiu foi consequência dessa opção. Pegar atalhos tem sempre um custo alto na política e na vida”, diz o historiador. Gabeira concorda: “Tudo se justificava pela ideia de que, como os fins eram nobres, podiam-se usar todos os meios”. Deu no que deu.

Em que pese a lerdeza do Brasil em embarcar em viradas históricas, o fim da ditadura enfim permitiu que aqui chegasse o principal legado de 1968 à política: de atividade restrita a um grupinho seleto, ela passou a ser assunto da população inteira. “O pessoal é político”, slogan do feminismo na época, ampliou-se para abranger as relações familiares, as relações entre homem e mulher, os direitos civis. Ao entrar para o dia a dia das pessoas, a política tornou-se alvo do olhar coletivo das sociedades. “Com a politização das relações, a política se espalhou para muitos recantos da vida comum. Demorou, mas hoje é um fenômeno muito presente, estimulado pelas mídias eletrônicas”, diz Gabeira. O Brasil da Lava-Jato carrega, sim, as marcas de 1968 — as ruins, mas também as boas.

Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2018, edição nº 2563

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.