A viagem da gripe
Os altos índices de hospitalização e morte nos EUA chamam atenção para o inverno no Brasil. Não há motivo para pânico, mas vacinar-se será imprescindível
Há 100 anos, teve início a mais terrível pandemia da história, a gripe espanhola. De março de 1918 a abril de 1919, 50 milhões de pessoas morreram infectadas, o equivalente, na época, a 3% da população mundial. Um século se passou, criaram-se vacinas, há muito mais conhecimento sobre o vírus causador, o influenza, e no entanto a doença continua a surpreender — embora sem a letalidade de antes.
No inverno deste ano a gripe está fazendo estragos nos Estados Unidos. O número de internações até maio, na primavera e no fim da temporada da gripe, ultrapassará o triste recorde das 970 000, de 2015. As mortes podem chegar ao absurdo de 56 000. É uma estatística acachapante, que levou à adoção de medidas extraordinárias, como a montagem de tendas de triagem e postos de atendimento nas calçadas. Até cirurgias eletivas de outras doenças chegaram a ser canceladas para a abertura de leitos destinados a pacientes com gripe. A questão que se impõe: como é possível, mesmo com tanto avanço da medicina, que a gripe ainda mate?
A explicação está nas características da doença. O vírus da gripe sofre mutações a todo momento. Não há outro microrganismo com tal capacidade. Para sobreviver, ele se adapta ao ambiente mudando constantemente a forma como as proteínas de sua superfície são organizadas, enganando, assim, as vacinas. As mutações mais drásticas (e menos comuns) deflagram novos subtipos (ou cepas) com particularidades genéticas inéditas. O subtipo responsável pela atual epidemia americana é o H3N2, uma versão agressiva e com imensa capacidade de alastramento. Ele provoca os mesmos sintomas de qualquer outra gripe, só que mais intensos, em especial entre crianças e idosos. Dada a velocidade de mudança do vírus, há uma corrida muitas vezes inútil para a fabricação de novas vacinas. Isso porque a intensa mutação do vírus da gripe faz com que elas cheguem à população já envelhecidas, obsoletas.
A composição da vacina é definida anualmente pela Organização Mundial da Saúde, após cada inverno. A partir da coleta de mais de uma centena de subtipos que circularam no mundo todo durante a estação, a entidade define as quatro cepas que deverão ser prevalentes no ano seguinte. As mutações mais drásticas são também as mais difíceis de prever, como foi o caso do H3N2. A vacina atualmente usada nos Estados Unidos previa combate a essa modalidade — mas o vírus já está levemente alterado, o que faz com que a vacina perca eficácia. O vírus H3N2, na verdade, não é novo. Ele surgiu em 1968, causando a chamada gripe de Hong Kong, a terceira maior epidemia do século XX. De lá para cá, nunca deixou de circular, ainda que de forma mais restrita. Ele se torna mais ou menos agressivo a depender da mutação e da prevalência sazonal.
A gripe que assola os Estados Unidos já chegou ao Brasil, com setenta infecções e quatro mortes, a maior parte nas regiões Sul e Sudeste. Muitos dos casos foram trazidos por pessoas que visitaram os Estados Unidos ao longo deste inverno. Mas o cenário que se verifica no Hemisfério Norte muito provavelmente não se repetirá no Brasil. Não há certeza de que a versão do H3N2 será tão virulenta por aqui — as mutações podem ou não ser as mesmas. Além disso, a vacina utilizada no Brasil deverá ter resultados melhores. Fabricada pelo Instituto Butantan, ela está sendo desenvolvida para combater uma versão mais próxima do H3N2 em circulação nos Estados Unidos. Tomá-la, dizem os especialistas, é compulsório. “Mesmo quando a imunização não protege totalmente, ela torna a infecção mais branda”, diz o infectologista Celso Granato, da Universidade Federal de São Paulo. O recado torna-se ainda mais relevante diante da habitual baixa adesão do brasileiro à vacina da gripe. O início da campanha de vacinação está previsto para abril.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575