Se dependesse da régua ética do Movimento Brasil Livre (MBL), que na semana passada saiu clamando nas redes sociais o boicote de uma exposição de arte brasileira contemporânea em Porto Alegre, sob a alegação de uma suposta celebração da pedofilia e da zoofilia, além de blasfêmia, a obra-prima de Leonardo da Vinci que aparece na página ao lado — Leda e o Cisne — jamais viria à luz. O MBL gritaria contra. A tela original foi pintada no século XVI e sumiu do mapa, mas a partir dela foram feitas dezenas de cópias que enfeitam grandes museus do mundo. A mais famosa, atribuída a um discípulo de Da Vinci, pode ser vista na Galleria Borghese, de Roma. Há ainda versões de Michelangelo, Rubens e Cézanne. O quadro exalta um mito grego. Leda era a mulher de Tíndaro e rainha de Esparta. Zeus, encantado com a beleza feminina, transformou-se num cisne de longuíssimo pescoço e, feito animal, pôde seduzir a moça. Da relação nasceram quatro filhos, a partir de dois ovos: Castor, Clitemnestra, Pólux e Helena — cujo rapto deflagraria a Guerra de Troia.
Os cavalos de Troia comandados pela rapaziada do MBL, a pretexto de condenar o que consideraram abusivo e despudorado, transportaram tropas mal dissimuladas de intolerância. A exposição, batizada de Queermuseu — Cartografias das Diferenças na Arte Brasileira, estava em cartaz no espaço do Santander Cultural desde 15 de agosto e fecharia as portas em 8 de outubro. Com os ataques do MBL e de alguns outros grupos menores, como o Centro Dom Bosco, associação privada de cariocas católicos, o núcleo de artes do banco espanhol antecipou o encerramento para domingo 10. Em nota oficial, o Santander pediu “sinceras desculpas” a todos os que se sentiram ofendidos pelas peças e dizia reconhecer que “algumas obras desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas”. Nada como a pressão feroz das redes sociais para tamanha epifania de conveniência. O Santander Cultural conhecia bem o conteúdo da exposição desde, pelo menos, outubro de 2016, quando o projeto de patrocínio foi aprovado pelo Ministério da Cultura, e com ele a autorização para abater em impostos os 800 000 reais investidos, que agora serão devolvidos. Naquele documento, a exposição já se chamava Queermuseu (queer é o termo em inglês para algo estranho, peculiar, mas mais usado hoje como sinônimo de gay), trataria de “diversidade” e “questões de gênero”, receberia alunos de escolas públicas e particulares e teria trabalhos como O Eu e o Tu, da mineira Lygia Clark (1920-1988), um par de roupas escuras semelhantes às de um apicultor, com algumas aberturas pelas quais duas pessoas podem explorar o corpo uma da outra — um dos trabalhos citados pelos esbravejadores. No lançamento da mostra, antes de a gangorra do marketing pender para o outro lado, o discurso era de celebração. “A diversidade é um valor para o nosso negócio”, jactava-se na ocasião Marcos Madureira, vice-presidente de marketing e sustentabilidade do Santander, em texto publicado no site do banco.
Kim Kataguiri, um dos líderes do MBL, recusa a pecha de censor. Diz ter feito legítima pressão, multiplicado o descontentamento. De fato, quem fechou a exibição foram os organizadores do evento, que num passe de mágica inverteram o raciocínio original. Mas os militantes do MBL bradaram vitória nas redes sociais — e seguem pedindo boicote à instituição financeira, como, aliás, também o fazem grupos da militância contrária, descontentes com o recuo do Santander. “O banco fechou a mostra porque quis, não houve coação”, diz Paula Cassol, coordenadora do braço gaúcho do MBL, que reconhece nem ter ido à exposição que condenou com tanto empenho. O prefeito de Porto Alegre, o tucano Nelson Marchezan Jr., compartilhou a notícia do fechamento em sua página no Facebook embarcando na histeria de que a retrospectiva fazia “apologia da pedofilia e da zoofilia”. Horas depois, assustadiço, apagou o post — e nunca mais quis tocar no assunto. A arquidiocese local foi mais enfática: “Em tempos de terrorismo e intolerância, não se constroem pontes com agressão e desrespeito pelo que é mais íntimo e sagrado no outro: sua fé e seu corpo”.
Manifestar opiniões é um direito inalienável. Ninguém é obrigado a gostar de uma obra de arte — muitas são realmente ruins, tolas, mas não importa. Uma coisa é a pedofilia ou a zoofilia — outra, obviamente, é a representação artística dessas aberrações. A Promotoria da Infância e da Juventude, que foi conferir as peças depois das acusações, nada de errado constatou. Uma delas seria o quadro Travesti da Lambada e Deusa das Águas, de Bia Leite, de 2013, que faz alusão à página de internet Criança Viada, uma resposta de humor de gays adultos ao preconceito sofrido na infância. Um pouco de pesquisa permitiria alcançar a referência.
O que a diatribe conservadora não percebeu é que é possível atacar a pedofilia e a zoofilia e ao mesmo tempo defender o direito de uma exposição de arte permanecer aberta. Um raciocínio de Umberto Eco (1932-2016) pavimenta esse terreno: “É possível que, diante de uma obra de arte, eu compreenda os valores que ela comunica e, ainda assim, não os aceite. Nesse caso, posso discutir uma obra de arte no plano político e moral e posso rejeitá-la, contestá-la justamente porque é uma obra de arte. Isso significa que a arte não é o Absoluto, mas uma forma de atividade que estabelece uma relação dialética com outras atividades, outros interesses, outros valores”. Empurrar o raciocínio de Eco para debaixo do tapete, única e simplesmente para evitar o debate, criando um comportamento monolítico, é postura inaceitável e, sobretudo, autoritária.
É desnecessário e quase repetitivo lembrar o que o nazismo de Adolf Hitler chamou de “arte degenerada”, porque sabemos claramente o que desejava e como a história terminou, e também porque haveria algum exagero na comparação com o episódio brasileiro. Mas, sempre que alguém se arvorou a definir o que é arte, houve imenso recuo, e só a pátina do tempo seria capaz de devolver um pouco de sensatez. Em 1917, uma mostra de Amedeo Modigliani numa galeria de Paris foi interrompida depois de um único dia, porque alarmistas conservadores que diziam querer uma “França livre” se incomodaram com os nus expostos. A polícia foi chamada e as telas mais evidentes, escondidas. Uma delas foi adquirida em leilão há dois anos por estratosféricos e nada pudicos 170 milhões de dólares. O comprador foi um chinês. Os olhos que há 100 anos enxergaram pornografia — um século atrás, antes, portanto, de Coco Chanel, Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, Bob Dylan, Beatles, Mick Jagger, a revolução sexual e Michael Jackson — hoje nada veriam, a não ser que fossem olhos treinados pelo MBL. Há saída para a estupidez da semana passada, o ataque dos conservadores e a capitulação do Santander Cultural? Sim, como nos ensinam eventos semelhantes. A única resposta contra a censura à arte é mais arte.
No fim dos anos 80, uma retrospectiva de nus e retratos do fotógrafo americano Robert Mapplethorpe (1946-1989), The Perfect Moment, foi inaugurada na Corcoran Gallery de Washington. Senadores conservadores aproveitaram o fato de a coleção ter recebido dinheiro público para pressionar pelo fim da retrospectiva, fazendo vista grossa à Primeira Emenda da Constituição, aquela da ampla e irrestrita liberdade de expressão. Venceram, mas foi uma vitória de Pirro. Nas semanas seguintes, as fotos proibidas foram lindamente projetadas nos muros externos da galeria para milhares de americanos avessos à censura. As impressões das fotos de Mapplethorpe, que eram avaliadas em 10 000 dólares, imediatamente passaram a ser negociadas a 100 000 dólares. Em São Paulo, na quarta-feira, imagens de obras da Queermuseu foram projetadas em um prédio da região central. Um dia antes, em Porto Alegre, a arte proibida ganhou visibilidade na rua. Em meio a protestos com militantes antimostra e anticensura que terminaram na repressão policial com gás de pimenta, réplicas dos quadros vetados, sobretudo os mais agressivos (veja abaixo), eram orgulhosamente apresentadas do lado de fora do Santander Cultural. Não será fácil a vida do obscurantismo.
O QUE QUEREM ESCONDER
A mostra Queermuseu tinha 263 obras. As três que aparecem aqui são as que provocaram mais ódio. Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva (abaixo), feita em acrílico pelo porto-alegrense Fernando Baril, de 1996, traz o símbolo máximo do cristianismo cercado por referências pop (1); Cenas de Interior II, de Adriana Varejão, de 1994, com 1,2 metro de altura por 1 metro de largura, “é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil”, segundo a artista (2); Travesti da Lambada e Deusa das Águas, de Bia Leite, de 2013, que faz parte da série Criança Viada, tem, nas palavras da autora, “a radical estratégia de ‘retornar’ simbolicamente uma agressão ao universo social do agressor, transformando o preconceito em experiência de alteridade” (3).
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548