Uma das características mais marcantes da economia brasileira é a profunda desigualdade de renda. Tem sido assim há décadas, apesar de alguma melhora em anos recentes. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, o Brasil é o décimo país mais desigual do mundo. Os números que mostravam essa realidade dramática vinham, tradicionalmente, das análises da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Agora, a Receita Federal tornou-se uma fonte nova de informações, ao passar a divulgar números estratificados das declarações anuais do imposto de renda, ampliando a base de dados. E daí surgiu uma novidade triste: o desequilíbrio de renda no Brasil é mais profundo do que se imaginava.
Adotando-se o critério da renda média da classe social, a desigualdade é quase o dobro da estimada anteriormente. Por esses novos critérios, a renda média das famílias mais ricas (classe A) é 32 vezes maior que a renda média das famílias mais pobres (classes D e E). Levando-se em conta apenas os dados do IBGE, a diferença ficava em dezoito vezes. Tamanha disparidade ocorre porque as pesquisas tradicionais têm dificuldade em captar os rendimentos dos mais ricos. Com os dados da Receita, a conta ficou mais transparente.
O mérito da descoberta pertence aos economistas Adriano Pitoli e Camila Saito, da Tendências Consultoria. Eles consideraram que estão na classe A as famílias com renda mensal superior a 17 286 reais e, nas classes D e E, as famílias com rendimento mensal abaixo de 2 302 reais. Pelo diagnóstico anterior, havia 1,9% das famílias brasileiras na classe A, que respondiam por 16,3% de toda a renda somada. Com os novos dados, sabe-se agora que existe o dobro de famílias que pertencem à classe A, e a fatia delas no bolo da renda é de 38%.
O estudo também revela o efeito da recessão prolongada, especialmente no biênio 2015-2016, sobre a mobilidade social. Milhares de famílias no topo da pirâmide caíram para classes mais baixas, mas, como sempre, o efeito foi particularmente perverso para os mais pobres — os que vivem na fronteira entre a miséria e as camadas inferiores da classe média. No total, 4,1 milhões de famílias passaram a engrossar as classes D e E. Elas foram penalizadas pelo desemprego e pela inflação. As classes mais altas conseguem se proteger melhor. Como resultado, houve uma reversão no processo de redução de desigualdade de renda no país.
Um aspecto negativo do incipiente processo de recuperação econômica é que ele não vai reduzir a desigualdade de renda entre pobres e ricos. Ao menos em um primeiro momento, o desequilíbrio entre a base e o topo da pirâmide social deverá se alargar. Isso já começa a ocorrer neste ano e deve ter continuidade ao menos até 2018. Há dois fatores para esse fenômeno. O primeiro é que a classe A reage mais rapidamente à recuperação porque nela um em cada quatro chefes de domicílio é empregador, ou seja, dono do próprio negócio. Os lucros vão subir, na média, mais rápido do que os salários. Outro fator que beneficia a classe A diz respeito ao perfil da retomada. Os setores que devem puxar o crescimento são intensivos em uso de máquinas e equipamentos, razão pela qual empregam pouca mão de obra. É o caso do segmento de petróleo e gás, da mineração, do agronegócio e de alguns ramos da indústria voltados à exportação. É um cenário bem distinto do ciclo de crescimento anterior (entre 2004 e 2013), liderado pelo consumo das famílias e que favoreceu o comércio e o setor de serviços de maneira geral, além da construção civil. “São setores que tradicionalmente empregam muito, e em especial trabalhadores de menor qualificação e renda”, afirma Pitoli. “Isso favoreceu a mobilidade social no período”, complementa. Em outras palavras, a fase anterior de crescimento propiciou a criação de empregos menos qualificados, promovendo a ascensão dos mais pobres e reduzindo a desigualdade.
Alguns indicadores demonstram que a classe A tem se beneficiado da melhora na economia e voltou a abrir o bolso. As vendas de imóveis de quatro dormitórios cresceram 12% nos últimos doze meses encerrados em abril na cidade de São Paulo, enquanto o mercado como um todo recuou 21%. O mesmo fenômeno se observa no comércio de carros novos. O segmento de automóveis médios e de luxo cresceu 5% de janeiro a maio, na comparação com o mesmo período de 2016, acima do ritmo de expansão de 2% do mercado inteiro. Nos anos anteriores à crise, foram os carros populares que puxaram a alta. Entre os dez mais vendidos neste ano estão três carros que custam entre 70 000 reais e 110 000 reais no modelo de entrada, como o Toyota Corolla e o Jeep Compass. A queda na taxa de juros, explica Pitoli, também contribuiu para o aumento dos gastos das famílias mais ricas. Antes, valia a pena manter o dinheiro aplicado. As decisões de compra de bens mais caros, como apartamentos e automóveis, haviam sido postergadas, o que começa a ser revertido agora. Vale lembrar ainda que quase um terço da classe A é composto do alto funcionalismo público, cujo rendimento foi preservado das intempéries econômicas.
A retomada do crescimento econômico também vai beneficiar, logicamente, as famílias das classes D e E, mas em velocidade mais lenta. Hoje existe uma massa de 14 milhões de desempregados, o que dificulta a recuperação da renda, particularmente nas ocupações de baixa qualificação. Dessa maneira, não se espera uma redução da desigualdade tão cedo. No longo prazo, o grande fator capaz de estreitar o fosso social é a educação. No curto prazo, porém, o governo pode ajudar com a aprovação de leis que facilitem a vida das empresas, como a reforma trabalhista, e melhorem o ambiente de negócios no Brasil. Com mais empregos agora e uma educação de qualidade no futuro próximo, os mais pobres conseguirão diminuir a distância que os separa dos mais ricos.
Pesadelo sob controle
Não deixar o caótico cenário político contaminar o ambiente econômico é agora uma das tarefas mais importantes da combalida administração de Michel Temer. Pois uma decisão da semana passada contribui, ao menos em parte, para erguer essa barreira. O governo anunciou a redução da meta de inflação, atualmente em 4,5% ao ano. Até o próximo ano, nada muda. Mas, em 2019, a meta será de 4,25%, e, em 2020, cairá para 4%. A diferença parece insignificante, mas ajuda a sinalizar o compromisso do país com a estabilidade de preços e aproxima os parâmetros brasileiros aos de nações mais estáveis. No Chile e no México, por exemplo, a meta é de 3%.
Depois dos anos de experimentos e pedaladas de Dilma Rousseff, a atual equipe econômica vem conquistando avanços inegáveis no combate à inflação, o que possibilitou também a redução na taxa de juros. Ao menos esse pesadelo está sob controle. Mas o sono perfeito, ou a concretização da estabilidade, ainda vai depender da austeridade nos gastos públicos — ancorada na reforma da Previdência. Nos cinco primeiros meses do ano, o rombo superou 70 bilhões de reais. Sem fechar esse ralo, a dívida pública continuará crescendo, o que vai pressionar novamente os juros. Reduzir a meta, portanto, é uma decisão coerente e desejável, mas será difícil cumpri-la se as reformas ficarem pelo caminho.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2017, edição nº 2537