Fortaleça o jornalismo: Assine a partir de R$5,99
Continua após publicidade

Chutinho na santa

Ao contrariar o dogma de que Maria foi virgem até o fim, o folhetim bíblico 'Jesus' reedita as provocações da emissora do bispo Edir Macedo aos católicos

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h45 - Publicado em 10 ago 2018, 07h00

Deitado na cama, o recém-casado José (Guilherme Dellorto) olha apaixonado para a noiva, dá uma batidinha no travesseiro dela e convida: “Vem cá, vem”. Só mais uma noite de núpcias com as doses de pieguice e tensão sexual costumeiras em qualquer dramalhão? Alto lá: a noiva retratada em Jesus, novo folhetim bíblico da Record, não se confunde com uma personagem qualquer. Ela é Maria de Nazaré (Juliana Xavier na primeira fase, Cláudia Mauro na idade madura), que a essa altura já carrega o Messias em seu ventre. O casal fica só nos cafunés na lua de mel, porém José vai compensar seu jejum de sexo ao longo do matrimônio. Após o nascimento de Jesus, ele e Maria terão outros seis filhos.

Na produção da Record, Maria é uma mulher abençoada, mas mortal comum. A ideia traz embutida uma provocação aos católicos. Ao questionar a virgindade eterna de Maria, a emissora de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, reincide em uma velha fixação: o ataque a Nossa Senhora. Certamente, não é um golpe chulo como o “chute na santa” — pontapé desferido em uma imagem de Nossa Senhora Aparecida por um pastor da Universal na TV, em 1995. Mais calejados, os bispos da Record aprenderam a fazer a coisa com jeitinho: a novela dá um chute simbólico na santa.

A batalha da Virgem resgata uma querela de cinco séculos. Com a Reforma, a visão dos cristãos sobre Maria sofreu um cisma radical. Católicos e protestantes concordam no que se refere ao fundamento místico da concepção: Jesus teria surgido no ventre de Maria por intervenção do Espírito Santo, mantendo-se intacta a virgindade da mãe. A partir daí, as interpretações se distanciam. Para os católicos, Maria continuará intocada por toda a vida e não terá outros filhos. No olhar protestante e evangélico, ela não abdica da vida de mulher — inclusive no sexo. Alimentada por disputas sobre a tradução do termo grego que designava “irmão” ou “primo” nos Evangelhos, a discussão vai longe. “Na luta dos neopentecostais por fiéis, desconstruir a imagem de Nossa Senhora é crucial. E a discussão sobre sua virgindade é fundamental para isso”, diz o sociólogo da religião Francisco Borba, da PUC de São Paulo.

Na novela, fica logo claro que Jesus tinha outros irmãos de sangue. Também se mostra o parto de Cristo em cores vívidas, com um nervoso José dando apoio, como um pai moderno, e Maria urrando de dor — na contracorrente da tradição católica, em que ela não teve a virgindade corrompida nem ao dar à luz (portanto, não teria sentido dores). Cenas assim enfureceram fiéis e sacerdotes católicos. “É o evangelho segundo Edir Macedo e seus espúrios interesses”, atacou, em rede social, o bispo Henrique Soares da Costa, de Palmares, Pernambuco.

Continua após a publicidade

É indisfarçável um certo cheiro de confronto no ar. Vale lembrar que em Apocalipse, empreitada bíblica anterior da emissora, o papa era — quanta sutileza! — o Anticristo. Mas o impacto do novo disparo se dissolve no colorido da produção. A cada passo de Jesus, o espectador não sabe se virá pela frente a grandiloquência de uma cena à la Cecil B. DeMille ou um esquete bíblico do Porta dos Fundos.

Há que fazer justiça: ao mostrar Maria como uma mulher normal, o roteiro de Paula Richard opta por uma trilha dramatúrgica mais verossímil. “A visão protestante naturaliza Maria. No fundo, o dogma da virgindade perpétua está ligado à rejeição do sexo. Por que não podemos retratar Maria do jeito que acreditamos?”, diz o pastor e teólogo presbiteriano Valdinei Ferreira, tocando na questão central da liberdade religiosa. Apesar da defesa da “Virgem naturalizada”, o pastor ironiza a motivação peculiar da agenda da Universal: “Eles têm tanta necessidade de hostilizar os católicos porque estão brigando pelo mesmo lugar no imaginário dos fiéis, com seus grandes templos e eventos”. Ave, Maria, rogai por nós, pecadores…

Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.