Deitado na cama, o recém-casado José (Guilherme Dellorto) olha apaixonado para a noiva, dá uma batidinha no travesseiro dela e convida: “Vem cá, vem”. Só mais uma noite de núpcias com as doses de pieguice e tensão sexual costumeiras em qualquer dramalhão? Alto lá: a noiva retratada em Jesus, novo folhetim bíblico da Record, não se confunde com uma personagem qualquer. Ela é Maria de Nazaré (Juliana Xavier na primeira fase, Cláudia Mauro na idade madura), que a essa altura já carrega o Messias em seu ventre. O casal fica só nos cafunés na lua de mel, porém José vai compensar seu jejum de sexo ao longo do matrimônio. Após o nascimento de Jesus, ele e Maria terão outros seis filhos.
Na produção da Record, Maria é uma mulher abençoada, mas mortal comum. A ideia traz embutida uma provocação aos católicos. Ao questionar a virgindade eterna de Maria, a emissora de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, reincide em uma velha fixação: o ataque a Nossa Senhora. Certamente, não é um golpe chulo como o “chute na santa” — pontapé desferido em uma imagem de Nossa Senhora Aparecida por um pastor da Universal na TV, em 1995. Mais calejados, os bispos da Record aprenderam a fazer a coisa com jeitinho: a novela dá um chute simbólico na santa.
A batalha da Virgem resgata uma querela de cinco séculos. Com a Reforma, a visão dos cristãos sobre Maria sofreu um cisma radical. Católicos e protestantes concordam no que se refere ao fundamento místico da concepção: Jesus teria surgido no ventre de Maria por intervenção do Espírito Santo, mantendo-se intacta a virgindade da mãe. A partir daí, as interpretações se distanciam. Para os católicos, Maria continuará intocada por toda a vida e não terá outros filhos. No olhar protestante e evangélico, ela não abdica da vida de mulher — inclusive no sexo. Alimentada por disputas sobre a tradução do termo grego que designava “irmão” ou “primo” nos Evangelhos, a discussão vai longe. “Na luta dos neopentecostais por fiéis, desconstruir a imagem de Nossa Senhora é crucial. E a discussão sobre sua virgindade é fundamental para isso”, diz o sociólogo da religião Francisco Borba, da PUC de São Paulo.
Na novela, fica logo claro que Jesus tinha outros irmãos de sangue. Também se mostra o parto de Cristo em cores vívidas, com um nervoso José dando apoio, como um pai moderno, e Maria urrando de dor — na contracorrente da tradição católica, em que ela não teve a virgindade corrompida nem ao dar à luz (portanto, não teria sentido dores). Cenas assim enfureceram fiéis e sacerdotes católicos. “É o evangelho segundo Edir Macedo e seus espúrios interesses”, atacou, em rede social, o bispo Henrique Soares da Costa, de Palmares, Pernambuco.
É indisfarçável um certo cheiro de confronto no ar. Vale lembrar que em Apocalipse, empreitada bíblica anterior da emissora, o papa era — quanta sutileza! — o Anticristo. Mas o impacto do novo disparo se dissolve no colorido da produção. A cada passo de Jesus, o espectador não sabe se virá pela frente a grandiloquência de uma cena à la Cecil B. DeMille ou um esquete bíblico do Porta dos Fundos.
Há que fazer justiça: ao mostrar Maria como uma mulher normal, o roteiro de Paula Richard opta por uma trilha dramatúrgica mais verossímil. “A visão protestante naturaliza Maria. No fundo, o dogma da virgindade perpétua está ligado à rejeição do sexo. Por que não podemos retratar Maria do jeito que acreditamos?”, diz o pastor e teólogo presbiteriano Valdinei Ferreira, tocando na questão central da liberdade religiosa. Apesar da defesa da “Virgem naturalizada”, o pastor ironiza a motivação peculiar da agenda da Universal: “Eles têm tanta necessidade de hostilizar os católicos porque estão brigando pelo mesmo lugar no imaginário dos fiéis, com seus grandes templos e eventos”. Ave, Maria, rogai por nós, pecadores…
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595