Nasci e cresci em Gana. Às vésperas de entrar na universidade, percebia com nitidez como o país estava enredado em um perverso ciclo de pobreza e escassez de valores. Para onde voltasse meu olhar no continente africano, a cena não mudava: via desordem institucional, corrupção, ineficiência, além de guerras e genocídios. Quis ir embora. Consegui vaga e bolsa em uma universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e ali estudei engenharia e economia. Fiz MBA na Universidade da Califórnia em Berkeley e arranjei emprego na Microsoft, onde escalei posições até ingressar no time que desenvolveu softwares para dar acesso à internet no celular. A Microsoft crescia mais do que o PIB de Gana. E eu virei milionário.
Nesse tempo, visitei meu país, vi parentes e amigos, mas nunca cogitei voltar. Até que um fato novo sacudiu minhas convicções: eu me tornei pai. E aí comecei a pensar nas raízes, na distância que tomei delas e sobre o que a África significaria para meu filho, nascido em um subúrbio de classe média de Seattle. Fiquei martelando, martelando naquilo, e um dia me veio a certeza de que deveria fazer algo relevante por Gana. Sempre fui um convicto defensor de que só uma boa educação pode chacoalhar uma sociedade e livrá-la de seus vícios. Enfim, decidi abrir uma universidade em Gana. Cheguei à Microsoft com a notícia e meus colegas me olharam perplexos. Um deles traduziu o clima geral em três palavras: “Você está louco”.
A Universidade Ashesi, em um subúrbio de Acra, a capital do país, começou com dinheiro de doações, inclusive de gente da Microsoft, e um empréstimo do Banco Mundial. Eu mesmo botei algum capital ali. No início, em 2002, eram trinta alunos; em 2018 chegaremos a 2 000, já matriculados em áreas como administração, análise de sistemas e gestão. Dito assim, parece uma faculdade como qualquer outra. Mas tem um propósito que corre lado a lado com a excelência nas ciências que ensinamos: formar cabeças capazes de discernir o que é ético do que é antiético e de disseminar essa compreensão — isso em um país onde a corrupção está entranhada de forma atávica à cultura. Os problemas postos em sala de aula sempre remexem nesse vespeiro ao mesmo tempo em que transmitem a matéria.
Liberdade de expressão, livre-iniciativa, gestão moderna são termos relativamente novos no vocabulário de Gana. O atraso do país, que espelha a realidade africana, é medido pelo número de pessoas que prosseguem os estudos depois do ensino médio: não mais do que 5% da população. A estatística piora quando sabemos que a qualidade não é o forte do ensino superior. Ficou claro para mim que tínhamos uma séria lacuna de gente bem preparada para liderar a tão necessária virada para a modernidade. “Formar líderes” pode soar como um clichê deste século, mas é isso que buscamos na universidade que criei: lapidar talentos que possam romper a lógica do fracasso e puxar os demais, no setor público ou no privado. Outro ponto em que bato o tempo inteiro é oferecer dentro da universidade oportunidades para que o pensamento crítico e criativo se sobreponha à visão enciclopédica do passado.
A realidade de muita gente já foi transformada, inclusive a de pessoas que jamais poderiam bancar uma boa universidade, cujos pais nem sequer pisaram na escola — esses alunos recebem bolsa. Vários ex-alunos estão fazendo carreira hoje na área financeira e na indústria de petróleo. O retorno que tenho de seus empregadores me permite acreditar que fiz uma boa escolha: eles dizem que essa turma é diferente, é inconformada e atuante. Educadores de outros países africanos vêm nos visitar, para aprender conosco. E estou sempre bebendo da fonte das pessoas que ajudaram a construir em mim um olhar de indignação. Estamos no começo, mas uma certeza eu tenho: cometi uma boa loucura.
Depoimento a Monica Weinberg, em Doha
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2017, edição nº 2559