De astronauta a goleiro
Na Rússia, o futebol perdeu espaço para o hóquei no gelo, mas ainda é uma ponte entre o presente e a nostalgia do tempo de Iuri Gagarin e Lev Yashin
Meninos e meninas de 7 a 11 anos correm atrás da bola, como qualquer criança em qualquer parte do mundo, no campo da Smena, uma escolinha de futebol ligada ao principal clube de São Petersburgo, o Zenit. É inverno, dezembro do ano passado, véspera do sorteio para a Copa. Neva muito do lado de fora do gramado coberto. Iuri Rodenkov, o professor da turminha, ex-jogador profissional, observa a algazarra, os gorros e as luvas, sorri e resume a cena para a reportagem de VEJA: “Toda criança russa quer ser astronauta ou goleiro”. Ou seja: toda criança sonha ser Iuri Gagarin (1934-1968), o cosmonauta que pela primeira vez viu a Terra lá de cima, em 1961, para revelá-la “azul, maravilhosa e incrível”, ou Lev Yashin (1929-1990), o Aranha Negra, o maior de todos os atletas debaixo dos três paus, campeão olímpico de 1956. Gagarin e Yashin são heróis do período soviético, mas ainda hoje costumam ser lembrados com carinho. Não por acaso, a dupla é homenageada num dos pôsteres oficiais da competição, em que o arqueiro faz uma atlética defesa, estica os braços para alcançar a bola, que ali aparece como o mundo que se viu do cosmo. Disse Yashin, certa vez, ao costurar sua mitologia com a do companheiro espacial: “A alegria de ver Iuri Gagarin no espaço só é superada pela alegria de uma boa defesa de pênalti”.
O encanto infantil pelas duas figuras e a maneira como os pequenos se aproximam do futebol são de certa forma o retrato do comportamento de um país que continua a admirar o passado e gosta de lamber as feridas, numa postura nostálgica que parece ignorar as sombras escuras do que ficou para trás. Um levantamento feito em março deste ano pelo instituto Levada, o único centro de pesquisas russo independente e respeitado, mostrou que apenas 2% de 1 600 entrevistados disseram odiar o ditador Josef Stalin (1878-1953), 31% relataram indiferença, mas 29% — é muito! — disseram respeitar a bigoduda e temerária figura. E mais: 57% concordaram parcial ou totalmente com a seguinte afirmação: “Stalin era um líder sábio que fez a União Soviética próspera e poderosa”. Em outra pesquisa do Levada, 58% das pessoas afirmaram lamentar o colapso da União Soviética. Evidentemente, não há a menor possibilidade de volta do regime soviético nem, recuando mais no calendário, menos ainda do czarismo (embora Vladimir Putin tenha uma admiração especial pelo que há de autocracia em um e outro), mas esse túnel que leva ao pretérito tem o dom de iluminar um jeito de ser — e com o futebol também é assim. Futebol, na Rússia, é história.
Os grandes times de futebol mantiveram o nome e a postura dos anos soviéticos. O mais popular deles é o Spartak de Moscou, que, a bem da verdade, nunca teve ligação com o Estado. “É como o Flamengo no Brasil, tem torcedores em todas as regiões”, diz o atacante cearense Ariclenes Ferreira, o Ari, que passou pelo Spartak, clube batizado em homenagem ao gladiador que liderou uma rebelião em Roma. Os maiores adversários do Spartak eram e ainda são os Dínamos (de Moscou e Kiev, na Ucrânia), ligados à polícia; o CSKA, do Exército; o Lokomotiv, bancado pela indústria ferroviária; e o Zenit, da companhia de eletricidade de São Petersburgo, que cresceu muito na última década, turbinado pela Gazprom, a estatal do gás. A rivalidade foi sempre homérica, resolvida em pancadarias nos estádios, muitas vezes em assembleias de classe ou por decreto de governo. Aqui, sim, há uma grande mudança. Embora os clubes mantenham o nome de antes, uma doença moderna se alastrou inapelavelmente: o hooliganismo, importado do Reino Unido e que virou “okolofutbola”, na expressão local. Tal como entre os britânicos, houve tanto exagero que uma série de leis e controles policiais foi imposta para reduzir a violência.
Funcionou, ao menos dentro dos estádios, embora o risco de brigas seja um dos principais temores dos organizadores da Copa (sobretudo em possíveis mas improváveis encontros da Rússia com a Polônia ou a Inglaterra, “em razão do histórico de conflitos entre os países”, na explicação de Nikolai Shcherbak, ex-integrante da feroz torcida organizada do Spartak).
Se nos estádios os socos desapareceram, brotou uma bizarra modalidade fora deles: as brigas entre torcedores de agremiações inimigas são marcadas previamente e em geral acontecem em florestas de difícil acesso policial. Há tanta organização nesses combates que um influente deputado moscovita tem um projeto de lei engatilhado para regulamentar as contendas no braço, que seriam tratadas como um novo esporte. “Batalhas organizadas podem satisfazer a todos”, diz Igor Lebedev, o tal parlamentar da ideia torta. A regra: nada de armas de fogo, nem mesmo facas ou pedras. Só vale na mão mesmo, como se fosse uma solução aceitável. Talvez por isso o futebol não tenha conquistado na Rússia o espaço que adquiriu em outros países da Europa, como a Espanha e a Itália, ainda que eles também não estejam imunes à pancadaria. Há evidências de que o esporte número 1 da Rússia seja o hóquei no gelo (Putin é admirador confesso da modalidade, além de faixa-preta de judô).
A Copa do Mundo seria uma oportunidade de fazer crescer o interesse pelo futebol na Rússia — o esporte é praticado em campos amadores por todo o país, mas sem muita paixão. Ao que tudo indica, porém, a oportunidade será perdida, e nesse aspecto as semelhanças com o Brasil são muitas. Lá como cá, o futebol já não é o ópio do povo. O Datafolha publicou recentemente uma pesquisa que mostra que 41% dos brasileiros não têm interesse por futebol — um aumento de 10 pontos porcentuais em relação ao levantamento anterior, de oito anos atrás. Entre os que disseram ter grande interesse, houve uma queda de 32% para 26%. Lembrar que, entre uma pesquisa e outra, ocorreu uma Copa no Brasil, em 2014, traz a constatação de uma pequena tragédia. Não há estatística precisa sobre os humores russos em relação ao futebol, mesmo porque eles nunca foram tão devotados como os brasileiros. Mas pode-se apostar que a Copa não dará grandes frutos, além da alegria momentânea. Ao contrário, pode resultar até em muita confusão mais tarde.
O nome do jogo da confusão é corrupção. Boa parte dos russos foi contra a realização da Olimpíada de Inverno de Sochi, em 2014 (os jogos mais caros de todos os tempos, com custo estimado em 50 bilhões de dólares, o equivalente a 185 bilhões de reais), e da Copa (orçada em quase 11,8 bilhões de dólares, cerca de 38 bilhões de reais, 5 bilhões a mais que o gasto no Mundial do Brasil). O imponente Estádio Krestovsky, em São Petersburgo, que durante o Mundial será chamado de Zenit Arena, foi alvo das maiores contestações: a obra, que lembra um disco voador e está encravada em uma ilha banhada pelo Rio Neva, demorou incríveis dez anos para ser concluída, entre reformulações, atrasos e polêmica. Segundo o governo, gastou-se o equivalente a 2,3 bilhões de reais, mas investigações paralelas estimam o dobro dessa quantia — o Mané Garrincha, o estádio mais caro da Copa no Brasil, custou cerca de 1,5 bilhão de reais. O Zenit (do qual Putin é torcedor) foi presidido na década passada por Vitaly Mutko, o controverso Senhor Esportes da Rússia, envolvido até o pescoço no escândalo de doping no atletismo do país. Há outra infeliz semelhança entre Brasil e Rússia: a escolha questionável das sedes. Aqui, cidades mais recomendáveis como Goiânia e Belém foram preteridas por Cuiabá e Manaus. Na Rússia, o candidato a elefante branco é a arena de Saransk, cidade com pouco mais de 300 000 habitantes e nenhum clube na primeira divisão. Ficou de fora Krasnodar, que tem clube relevante e um dos estádios mais bonitos da Europa.
As acusações de desvios, falcatruas e desperdício não fazem Putin piscar. Recentemente, Boris Johnson, ministro inglês das Relações Exteriores, protagonizou um incidente diplomático ao dizer que o presidente russo usa a Copa como propaganda política, “como Hitler fez com a Olimpíada de Berlim, em 1936”. O Kremlin classificou a comparação como “nojenta” e mandou o jogo seguir, porque seu projeto de poder pressupõe que venham aí outros gagarins e yashins, astronautas e goleiros.
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2018, edição nº 2586