O Estado brasileiro enfrenta uma das maiores crises de sua história. Faltam recursos para manter hospitais, para o pagamento de professores nas escolas e para o custeio de investimentos nas cidades. Falta dinheiro para obras públicas e programas de qualificação profissional, que poderiam reduzir o contingente de 13 milhões de trabalhadores desempregados. O quadro é desolador. O governo deve encerrar o ano com um rombo de quase 160 bilhões de reais nas contas federais. Mas nada disso foi levado em consideração pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que se autoconcederam um reajuste de 16,38% sobre um salário mensal de 33 763 reais. A decisão foi tomada em sessão interna na quarta-feira 8, com sete ministros a favor do aumento e quatro contra. Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux e Alexandre de Moraes votaram a favor; Cármen Lúcia, Celso de Mello, Rosa Weber e Edson Fachin foram contrários. “A mim parece que devem ser consideradas a crise fiscal que afeta o Estado e a crise social que se projeta sobre milhões de desempregados”, afirmou Celso de Mello, decano da Corte, ao justificar seu voto contrário.
A decisão deveria beneficiar, em tese, apenas os onze ministros do STF, mas terá impacto em efeito cascata. Por lei, algumas carreiras do Judiciário, como a de promotor e a de procurador, têm salários atrelados aos concedidos ao Supremo. Isso significa que eles também serão agraciados. A regra se aplica ainda a parlamentares. As estimativas variam, mas a conta adicional será de 720 milhões de reais por ano a partir de 2019 para as carreiras do Judiciário. Para toda a União, o gasto adicional pode chegar a 3 bilhões de reais. O efeito negativo poderá ser ainda mais profundo, pois outras categorias do funcionalismo devem pleitear na Justiça reajustes similares.
Trata-se de um sério risco para as contas públicas, uma vez que a lei do teto coloca uma trava no aumento indiscriminado dos gastos. “Cerca de 70% da despesa primária está comprometida com a folha de pagamentos e com as aposentadorias. Quando há aumentos nos gastos com pessoal, é preciso cortar algo dentro dos 30% restantes, que são despesas com saúde, educação e investimentos”, explica Rogério Nagamine, coordenador de seguridade social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para José Roberto Afonso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), o desrespeito aos limites de gastos com a folha de pagamento — de 60% da receita da União — explica a situação recorrente de déficit nas contas do governo. “A contratação de servidores e a definição de seus salários foram descoladas da capacidade do governo de arrecadar”, afirma Afonso.
O reajuste decidido pelo Supremo precisará ser aprovado pelo Congresso e, depois, sancionado pelo presidente Michel Temer para se tornar realidade. A força e a influência das camadas mais poderosas do serviço público sugerem que não será uma tarefa difícil. O lobby do funcionalismo é um dos mais atuantes no Congresso e foi um dos responsáveis pelo naufrágio da reforma da Previdência, que originalmente previa condições equânimes para a aposentadoria de funcionários públicos e de trabalhadores do setor privado. Servidores inativos recebem, em média, uma aposentadoria cinco vezes superior à de um beneficiário do INSS. Há outros descalabros: seguindo uma antiga regra de aposentadoria integral e de paridade salarial com funcionários ativos, muitos servidores aposentados também se beneficiarão do reajuste no STF e passarão a ter ganhos equivalentes aos de um ministro da Corte. São distorções que aprofundam a desigualdade de renda no país.
Os salários são o cerne da questão, mas existem ainda os “penduricalhos”, os benefícios para bancar despesas mensais dos servidores. Um deles é o auxílio-moradia, atualmente em 4 300 reais, cuja legalidade será alvo de decisão do Supremo, até o momento sem data marcada. É uma conta que ficou perto de 1 bilhão de reais em 2017. Em muitos casos, o auxílio é concedido a juízes e servidores que possuem imóvel na cidade em que trabalham. Não faltam exemplos de perpetuação dos privilégios. Na semana passada, o ministro Dias Toffoli reverteu uma decisão do Conselho Nacional de Justiça que determinava que juízes paulistas devolvessem valores recebidos acima do teto do funcionalismo. Toffoli achou que eles tinham todo o direito de ficar com o dinheiro. É um Brasil descolado da realidade.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595