Pau que bate em Chico bate em Francisco. E o que vinha batendo em Curitiba começa finalmente a bater em Brasília. Por ter sido gravado pedindo 2 milhões de reais ao empresário Joesley Batista, por ter indicado para receber o dinheiro seu primo Frederico Pacheco (“Alguém que a gente mata antes dele fazer delação”) e pelas imagens do primo contando as notas e colocando-as na mochila que viajaria até Minas Gerais, o senador Aécio Neves, até há pouco o nome mais vistoso e eleitoralmente poderoso do tucanato, acaba de virar réu no Supremo Tribunal Federal (STF) pelos crimes de corrupção passiva e obstrução da Justiça. A decisão da Primeira Turma da Corte foi acachapante: 5 votos a 0. É a primeira vez desde o início da Lava-Jato, em 2014, que um tucano entra para o rol de políticos processados no STF, categoria em que já se encontram há bom tempo senadores do PT e do MDB.
A queda de Aécio Neves é um estrondo. Das urnas presidenciais de 2014, ele saiu com 51 milhões de votos, tornou-se o líder da oposição ao governo petista e, com o impeachment de Dilma, virou o principal fiador do governo de Michel Temer. A dúvida política na época não era se Aécio seria presidente da República, mas quando. Presidente do PSDB por quatro anos, governador de Minas Gerais por dois mandatos e ex-presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves, além da carreira política, exibia um notável pedigree como neto de Tancredo Neves (veja a coluna de Roberto Pompeu de Toledo).
Às vésperas das eleições presidenciais mais imprevisíveis dos últimos trinta anos, a desgraça do tucano passa a ser também a desgraça de seu partido, já suficientemente desgraçado por conta própria. Na semana retrasada, chegou ao ex-governador de São Paulo e candidato da sigla à Presidência da República, Geraldo Alckmin, a ótima notícia de que o inquérito que o investiga pelo recebimento de 10,7 milhões de reais via caixa dois da Odebrecht tinha sido enviado à Justiça Eleitoral — um caminho bem mais suave que o da primeira instância, que tem sob jurisdição a força-tarefa da Lava-Jato. Mas o alívio durou pouco. Na segunda-feira 16, Paulo Vieira Souza, o Paulo Preto, notório operador financeiro dos tucanos, teve sua prisão preventiva mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, ampliando o temor do PSDB de que o homem que proferiu a frase “não se larga um líder ferido na estrada” feche delação premiada. Paulo Preto é suspeito de envolvimento em desvios de dinheiro público nas obras do Rodoanel, cujas investigações abarcam o senador José Serra, outro ex-presidenciável do PSDB que caiu em desgraça, e o chanceler Aloysio Nunes Ferreira, apontado como o tucano mais íntimo de Paulo Preto.
Para completar o quadro de desconforto para o partido, na quarta-feira dezoito integrantes dos governos estadual e municipal e cinco ex-presidentes do Metrô paulista se tornaram réus por improbidade administrativa. Foi, em resumo, uma semana infernal para o tucanato. E o futuro breve não promete dias melhores. Nesta terça-feira 24, a Justiça analisará o último recurso de Eduardo Azeredo, também ex-presidente do PSDB e ex-governador de Minas. O resultado do julgamento poderá levá-lo à cadeia pela condenação no escândalo conhecido como “mensalão tucano”.
Alckmin sentiu o cheiro de enxofre e apressou-se em dizer que, “evidentemente”, Aécio Neves deveria desistir de qualquer pretensão eleitoral — fosse à reeleição ao Senado, fosse a deputado. Irritado, Aécio mandou dizer que sua vida política “é decidida em Minas Gerais”. A candidatura de Alckmin precisa ficar longe de problemas. No último Datafolha, ele aparece em quinto lugar, com 6% das intenções de voto, atrás de Lula, Bolsonaro, Marina Silva e Joaquim Barbosa. Sobe até dois pontos nos cenários em que a candidatura de Lula é descartada. É o pior resultado de um tucano nesta altura da campanha desde 1989.
A crise do PSDB é tão profunda que tem impactado até o seu reduto mais fiel — o Estado de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, com 33 milhões de votantes, e há 24 anos uma espécie de Tucanistão brasileiro. Em 2006, Alckmin saiu do governo com 66% de aprovação para disputar o Planalto com Lula — e perdeu. Agora, tem 36% de aprovação e, para piorar, está no meio de uma guerra ferrenha entre os dois candidatos ao seu espólio: João Doria (PSDB) e Márcio França (PSB). O ex-prefeito largou na liderança, com 29%, mas tem dois problemas. Primeiro, também é o pior número de um candidato tucano ao governo paulista desde 1998. Segundo, sua rejeição bate em 34%, pois jurou que ficaria na prefeitura durante todo o mandato e, nos seus quinze meses como prefeito, fez tudo para deixá-la. Além disso, Doria tem nos seus calcanhares o emedebista Paulo Skaf, com 20% das intenções de voto. Márcio França, o atual governador, soma 8%.
Alckmin tem o pior desempenho de um presidenciável tucano nas pesquisas desde 1989
São várias as causas que explicam o declínio do PSDB no cenário político-partidário. Especialistas situam no impeachment de Dilma Rousseff o início da descida. A demora dos tucanos em aderir à defesa do processo contra Dilma e assumir sua liderança fez com que a sigla fosse atropelada pelo DEM e por partidos do Centrão. Mais tarde, com a queda de Dilma, o PSDB permitiu, docemente, que sua agenda reformista fosse capturada pelo governo de Michel Temer (MDB), do qual ficou apenas com o ônus: o estigma da associação com uma gestão impopular e também envolvida em denúncias de corrupção.
Mesmo diante de tudo isso, o PSDB teve bom desempenho em 2016. Foi o grande vitorioso dos pleitos municipais, quando passou a governar 24% da população brasileira, marca recorde desde 2000. A atuação positiva caiu por terra com as denúncias da Lava-Jato e as divisões internas do partido sobre o apoio ao governo Temer. “O partido acabou perdendo sua essência, coesão e densidade programática. Ficou parecido com os outros”, afirma Fernando Shüler, professor de ciência política do Insper.
Para além de seus erros estratégicos, o PSDB envelheceu mal. Discussões que estavam no centro de sua agenda, como a do papel do Estado, que pautou todas as últimas eleições desde a redemocratização e ajudou a cimentar a polarização com o PT, perderão espaço no debate público em 2018, acredita o cientista político Rafael Cortez, da consultoria Tendências. “Ganharão relevância as questões identitárias de comportamento, raça, gênero, porte de armas, assuntos que sempre se localizaram nos extremos e o PSDB sempre passou ao largo.” Não por coincidência, o ex-presidente e grão-tucano Fernando Henrique Cardoso faz análise parecida em seu novo livro, Crise e Reinvenção da Política no Brasil (leia a resenha).
Aécio estava preparado para prestar contrapartidas no momento oportuno.
Raquel Dodge
No plano jurídico, a transformação de Aécio em réu no STF é um divisor de águas. Assim como a prisão de Lula reforçou a jurisprudência sobre a possibilidade de prisão depois de condenação em segunda instância, a instauração do processo contra o senador confirmou o entendimento, iniciado no mensalão, de que não é preciso um “ato de ofício” para que se configure crime de corrupção passiva. Ou seja, não é necessário que haja prova material e cabal de benefício dado por um agente público em troca de vantagem financeira oferecida por um ente privado. Basta que o agente público tenha “condições” de favorecer o ente privado “em razão do cargo”, como define o artigo 317 do Código Penal. No caso de Aécio, sobram provas de que ele pediu a Joesley Batista — e recebeu — 2 milhões de reais, mas não há configuração do benefício que teria concedido ao empresário em contrapartida. Para a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a conversa travada entre o senador e o empresário se inseriu em um “contexto de reiterado auxílio mútuo” e mostra que, “no momento oportuno”, os 2 milhões seriam devidamente “pagos” pelo senador. “Adotar a tese contrária significará um passe livre para a prática de diversos crimes de corrupção”, acrescentou a procuradora no memorial da denúncia. Os cinco ministros do STF acataram a sua tese.
É uma interpretação crucial. A exigência do “ato de ofício” foi consolidada como jurisprudência no STF no caso do ex-presidente Fernando Collor de Mello em dezembro de 1994. Na ocasião, por 5 votos a 3, o Supremo decidiu absolvê-lo do crime de corrupção passiva justamente por não haver provas concretas que o ligassem ao esquema de arrecadação ilegal de seu tesoureiro, Paulo César Farias. A percepção começou a mudar em 2012 no julgamento do mensalão, que derrubou quase toda a cúpula do PT. Agora, a consolidação desse entendimento também pode complicar a vida do presidente Michel Temer, que já teve duas denúncias barradas pelo Congresso. Seguindo essa perspectiva, seria possível atribuir-lhe “ato de ofício em potencial” por ter indicado a Joesley Batista o seu ex-auxiliar Rodrigo Rocha Loures como interlocutor para cuidar de interesses da J&F. Loures recebeu uma mala recheada de dinheiro com a promessa de influir a favor da J&F em processos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
A última pesquisa Datafolha revelou que nada menos que 84% dos brasileiros são favoráveis à continuidade da Lava-Jato. A natureza suprapartidária do apoio (79% entre os eleitores do PT e 94% entre os do PSDB) seria suficiente para demolir teses sobre o suposto caráter persecutório da investigação, brandido ora por um lado ora por outro, a depender da cabeça em jogo — na semana passada, a atingida foi a do senador Aécio Neves. O pau que bate em Chico e em Francisco alcançou finalmente os tucanos.
Os outros inquéritos de Aécio
1. FURNAS
Acusado de receber propina a partir de desvios da estatal. Crimes: corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
2. CPI DOS CORREIOS
Suspeito de obstruir apurações para proteger aliados e a si próprio. Crimes: gestão fraudulenta de instituição financeira, falsidade ideológica, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
3. CAMPANHA DE 2010
Investigado por pedir propina à Odebrecht para irrigar a campanha de Anastasia ao governo mineiro. Crimes: corrupção passiva e ativa e lavagem de dinheiro.
4. CAMPANHA DE 2014
Acusado de intermediar pagamento de 6 milhões de reais para campanha de aliados. Crimes: corrupção passiva e ativa e lavagem de dinheiro.
5. CAMPANHA DE 2014
Suspeito de negociar propina com a Odebrecht para sua campanha à Presidência e em favor de aliados. Crimes: corrupção passiva e ativa e lavagem de dinheiro.
6. HIDRELÉTRICAS
Investigado por receber propina para beneficiar a Odebrecht no leilão das usinas de Santo Antônio e Jirau. Crimes: corrupção passiva e ativa e lavagem de dinheiro.
7. CIDADE ADMINISTRATIVA
Suspeito de armar um cartel nas obras da sede do governo mineiro para obter propinas. Crimes: corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro, cartel e fraude em licitações.
8. DESDOBRAMENTO DA JBS
Acusado de receber propina entre 2014 e 2016 e de atuar para ocultar a sua origem. Crimes: corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Senadores que já são réus na Lava-Jato
Os ministros do Supremo Tribunal Federal abriram ações penais contra outros cinco colegas de tribuna de Aécio Neves para apurar atos de corrupção e lavagem de dinheiro
AGRIPINO MAIA (DEM – RN)
Réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Presidente do DEM, é suspeito de receber propina da OAS para facilitar repasses do BNDES à empreiteira.
FERNANDO COLLOR (PTC – AL)
Réu por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e atuação em organização criminosa. É acusado de receber 29 milhões de reais desviados da BR Distribuidora.
GLEISI HOFFMANN (PT – PR)
Ré por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Presidente do PT, é acusada de receber propina do esquema da Petrobras em sua campanha ao Senado.
ROMERO JUCÁ (MDB – RR)
Réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Presidente do MDB, é suspeito de favorecer a Odebrecht em duas MPs em troca de propina.
VALDIR RAUPP (MDB – RO)
Réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. É acusado de receber propina da empreiteira Queiroz Galvão disfarçada de doação eleitoral.
Prisão à vista
São enormes as possibilidades de que o PSDB sofra um novo revés jurídico nesta terça-feira 24. Os cinco desembargadores que compõem a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais analisarão o último recurso capaz de alterar a condenação a vinte anos e um mês de prisão de Eduardo Azeredo no escândalo conhecido como “mensalão tucano”. Azeredo foi sentenciado em segunda instância pelos crimes de peculato e lavagem de dinheiro, cometidos durante sua tentativa frustrada de se reeleger ao Palácio da Liberdade, em 1998. Na ocasião, perdeu para Itamar Franco.
O esquema, que desviou ao menos 3,5 milhões de reais (em valores da época) de três estatais mineiras, foi descoberto em meio às investigações do mensalão, em 2005. Mas teve o julgamento retardado porque Azeredo decidiu renunciar ao mandato de deputado em 2014, pouco antes de o STF iniciar a análise da questão. Com a manobra da renúncia, o processo de Azeredo foi remetido à primeira instância, na qual recebeu uma sentença de vinte anos e dez meses de prisão em 2015. O Tribunal de Justiça de Minas, em agosto de 2017, confirmou a sentença mas a reduziu para vinte anos e um mês.
A defesa só teve o direito de apresentar embargos infringentes ao tribunal porque Azeredo obteve um voto pela absolvição entre os três desembargadores que o julgaram. O relator do caso, desembargador Alexandre Victor de Carvalho, disse que a denúncia era inepta e que não havia provas suficientes para comprovar a participação do ex-governador nos crimes. O revisor Pedro Vergara e Adilson Lamounier discordaram. E votaram pela condenação.
Se o recurso for rejeitado, os advogados poderão interpor embargos de declaração sobre o novo acórdão, cuja finalidade é esclarecer contradições, omissões ou ambiguidades. Os embargos de declaração, porém, não mudam o conteúdo da sentença. Depois disso, Azeredo, assim como ocorreu com o ex-presidente Lula, já poderá ser preso. O julgamento deverá ocorrer ainda neste primeiro semestre.
Apesar de ser réu em um processo que vem se arrastando com uma conveniente lentidão, Azeredo é o primeiro tucano de alta plumagem a chegar tão perto da cadeia. Além de senador e governador de Minas, ele foi prefeito de Belo Horizonte, deputado federal e presidente nacional do PSDB.
Com reportagem de Victória Serafim
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579