Desisti de morrer
Com síndrome incurável, a médica Letícia Franco, de 37 anos, conta por que deu nova chance à vida
Eu passei muito tempo pensando que tirar minha vida seria a única forma de acabar com um sofrimento intenso e extraordinário com o qual convivia fazia oito anos, desde que descobri ser portadora da síndrome Ásia. É uma doença autoimune, rara, incurável e extremamente debilitante e dolorosa. Há três meses, escolhi uma clínica na Suíça que realiza o suicídio assistido. Lá, o procedimento é legal e o trâmite foi mais rápido do que eu imaginava. Em março, enviei um e-mail explicando a minha debilidade e, no mesmo dia, tive retorno. Pediram-me três laudos médicos que comprovassem o agravamento da minha patologia, um exame psiquiátrico para atestar minha lucidez e uma garantia de que eu estava apta a movimentar os membros superiores, já que tomaria sozinha os remédios que tirariam minha vida.
Primeiro, beberia um líquido para preparar o organismo para aceitar as próximas substâncias, que iriam deprimir meu sistema respiratório e me fazer, finalmente, adormecer. Não há desconforto, tampouco há dor. Com dignidade e em poucos minutos, eu não estaria mais nesta vida. Na clínica há poucos quartos, um crematório e muito verde. É um lugar bonito e agradável aos olhos. Era preciso enviar a confirmação de duas pessoas que me levariam até lá. Escolhi uma amiga e minha mãe, que também é médica. Num primeiro momento, ela concordou.
Foi então que decidi escrever uma carta de despedida aos meus amigos e familiares em uma rede social. A notícia se espalhou de uma forma que jamais imaginei. Em poucos dias, eu me vi em jornais, sites e até em revistas internacionais. Passei a receber ligações com pedidos de entrevista de todo o país, e pessoas foram até minha casa na tentativa de fazer contato. Eu estava na UTI pela 37ª vez.
Minha história chamou a atenção de uma médica de São Paulo, que me ofereceu gratuitamente uma terapia alternativa complementar com ozônio, cujo objetivo é aumentar a oxigenação no corpo. Depois da 18ª sessão com a aplicação do gás ozônio via retal, três vezes por semana, juntamente com remédios da terapia ortomolecular, consegui voltar a viver. Minha perna, que estava quebrada por causa do desenvolvimento de osteoporose decorrente dos medicamentos, cicatrizou. Recuperei a função do trato urinário, abandonei a morfina para aliviar dores lancinantes, assim como a maioria dos remédios orais que tomava com a mesma finalidade. Vi-me novamente capaz de tomar banho sozinha, ter vida social, passear, dançar… Não sei quanto tempo essa melhora vai durar e entendo que nada disso significa cura, mas voltei a ter vontade de lutar.
Além da atenção dessa médica, minha carta também alcançou um ex-namorado de dez anos atrás. Ele chegou quando eu estava acamada, inchada, com a pele cheia de feridas e necessitando de ajuda até para ir ao banheiro. Mas insistiu e, depois de uma semana, estava morando comigo e cuidando de mim. Esse rapaz se tornou novamente meu namorado e me mostrou que o amor pode salvar uma pessoa de várias formas. Jamais imaginei que voltaria a me relacionar com alguém, mas logo ficamos noivos, e nos casamos em 29 de junho. Na maioria dos dias, na companhia dele e da minha família, chego a esquecer que tenho essa doença tão triste.
Hoje, vivo um dia de cada vez. Estou aposentada por invalidez, tomo 48 comprimidos diários e injeções para que a musculatura não atrofie e para aumentar o número de glóbulos vermelhos do sangue. Mas estou feliz. Ganhei dois prêmios internacionais de oftalmologia, um reconhecimento na área da Organização Mundial da Saúde (OMS) e comecei a escrever um livro sobre a minha vida. Pretendo dar palestras sobre a síndrome e lutar para que haja apoio mundial na busca da cura ou de tratamentos. Sou grata a Deus. Ele me deu uma cruz e me mostra, todos os dias, que sou capaz de carregá-la.
Depoimento dado a Thaís Botelho
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592