Doutor 171, a seu dispor
Mestre em autopromoção, “Doutor Bumbum” vendia milagres. A morte de uma paciente, porém, ajudou a revelar sua vasta ficha de erros médicos, golpes e dívidas
Loira, bonita e vaidosa, Lilian Calixto Jamberci, bancária de 46 anos, julgou ter escolhido um grande especialista quando resolveu aprimorar o contorno dos glúteos. O médico Denis Furtado, carioca de 45 anos, com quase 650 000 seguidores no Instagram, era até pouco tempo atrás uma subcelebridade conhecida como “Doutor Bumbum”. Na tarde de quinta-feira 19, ele e a mãe, Maria de Fátima Furtado, foram presos no escritório do advogado que negociava a entrega dos dois à polícia. A PM chegou antes. Eles foram indiciados por homicídio qualificado e associação criminosa — a prisão provisória de ambos já fora decretada pela Justiça. A secretária da “clínica”, Renata Fernandes, de 20 anos, namorada de Furtado, já tinha sido levada para a cadeia.
Ao confiar nele, Lilian cometeu um engano que lhe custou a vida. A bancária morava em Cuiabá, em Mato Grosso, com o marido e os dois filhos. No sábado 14, viajou para o Rio, onde, na noite do mesmo dia, iria se submeter a um procedimento estético arriscado (leia o quadro na página ao lado). No meio da intervenção, ela passou mal. Foi levada por Furtado e sua mãe, também médica, a um hospital da Zona Oeste do Rio de Janeiro, mas não resistiu após quatro paradas cardiorrespiratórias, provavelmente causadas por embolia pulmonar. O médico e a mãe fugiram enquanto Lilian ainda agonizava.
Furtado se apresentava como um ás desse e de outros procedimentos estéticos. Promovia-se no Facebook e no Instagram, divulgando fotos e vídeos de pacientes antes e depois de passarem por seu consultório. Enaltecia a própria habilidade, além de expor fotos de si mesmo exibindo os músculos sem camisa. Após a tragédia seu real currículo veio à tona.
De acordo com levantamento feito por VEJA, o Doutor Bumbum é ou já foi alvo de pelo menos quarenta processos na área cível, alguns por erro médico e outros vários por calotes de toda espécie — condomínios e aluguéis atrasados, dívidas tributárias e trabalhistas. Em novembro passado, uma clínica clandestina mantida por ele em Brasília, que funcionava em uma casa na vizinhança nobre do Lago Sul, sofreu uma batida policial. No local, foram apreendidos duas pistolas, uma espingarda e 1 milhão de reais. Furtado não tinha licença para trabalhar no Rio. Mesmo assim, fazia seus “procedimentos” na cobertura na Barra da Tijuca em que ficava quando estava na cidade. Foi lá que atendeu Lilian. Para manter certa pose, dava aos clientes o endereço de uma sala em um shopping center, onde, de acordo com os registros da prefeitura, funcionaria um salão de beleza. Mas, por telefone, esclarecia que o atendimento seria no seu apartamento.
Furtado se formou em medicina em uma universidade particular de Vassouras, mas nunca fez especialização. Em 2016, teve o registro profissional suspenso em Brasília pelo Conselho Regional de Medicina. Apelou e conseguiu liminar para continuar na profissão. Na quinta-feira 19, o CRM-DF cassou o seu direito de exercer a medicina. Nos últimos anos, vinha atendendo no Rio e em São Paulo, apesar de não ser credenciado em nenhum dos dois conselhos.
Sua mãe, Maria de Fátima, de 66 anos, que trabalhava com ele e ajudou a levar Lilian para o hospital quando ela passou mal na cobertura do filho, está com o registro de médica cassado desde 2015 por fazer propaganda de procedimentos não autorizados.
Depois da morte da bancária, vítimas do Doutor Bumbum decidiram revelar o que passaram em suas mãos. Uma delas falou a VEJA com a condição de manter sua identidade em sigilo, porque tem receio e vergonha de se expor publicamente. “Essa tragédia poderia ter acontecido comigo”, disse, aos prantos. Moradora de Brasília, A.L., de 41 anos, contou que pagou 9 000 reais ao médico em 2014 para fazer uma aplicação de polimetilmetacrilato, ou apenas PMMA, nos seios. Ainda na sala de espera, assistiu a uma cena preocupante: um homem entrou aos gritos, exigindo o pagamento de uma dívida; Furtado deixou uma paciente na maca e foi se confrontar com o invasor. Os dois quase se engalfinharam. Ela lembra que sentiu muita dor durante o procedimento e teve queda de pressão — o médico lhe ofereceu uma pitada de sal. O resultado foi desastroso, e ela teve de recorrer a outro médico para remover o material. A modelo Flávia Tamayo, de 20 anos, procurou Furtado porque queria aumentar as coxas e as nádegas por meio de injeções de PMMA. Passou sem problemas pelo procedimento, mas conta que um detalhe do episódio a intrigou. Ao chegar à clínica brasiliense, viu Furtado bebendo vinho e espumante momentos antes de atendê-la. Prova de que, ao menos nos quesitos irresponsabilidade e desprezo pela vida alheia, o Doutor Bumbum é um médico extraordinário.
Técnica com PMMA é mais arriscada que cirurgia plástica
O procedimento estético a que se submeteu a bancária Lilian Jamberci é uma alternativa mais barata e mais rápida à cirurgia de colocação de prótese de silicone nos glúteos — e também seis vezes mais arriscada. A técnica consiste na injeção de produtos sintéticos destinados a “preencher” e modelar a área. No caso da bancária, a substância usada foi o polimetilmetacrilato, ou PMMA — composto de micropartículas de acrílico semelhantes ao plástico, não absorvíveis pelo organismo. Quando aplicado em pequenas quantidades, em geral na face, o PMMA oferece poucos riscos. Mas em volumes maiores, e sobretudo em áreas muito vascularizadas, como coxas e glúteos, ele pode “invadir” um vaso sanguíneo e provocar seu entupimento — a chamada embolia, a principal suspeita de ter causado a morte da bancária. “Por isso o procedimento deve ser realizado por médicos com grande conhecimento de anatomia e do produto”, explica Marcelo Araújo, cirurgião plástico do Hospital Albert Einstein, de São Paulo.
A aderência de bactérias às micropartículas da substância é outro risco. O acúmulo desses microrganismos cria um tipo de película que impede as células de defesa de eliminar o corpo estranho. Por essa razão, inflamações, reações alérgicas e formação de nódulos também podem ocorrer. Já as próteses de silicone introduzidas nos glúteos pelo método cirúrgico são rígidas e biocompatíveis — ou seja, aceitas pelo organismo. A bioplastia de glúteos, como é chamada essa técnica de preenchimento, pode ser feita em clínicas de estética. As cirurgias de colocação de prótese só podem ser realizadas em hospital.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592