A professora de literatura Laura Borràs, de 47 anos, faz questão de ministrar suas aulas na Universidade de Barcelona em catalão, mesmo quando os alunos perguntam se ela poderia se dirigir à classe em espanhol. “Eu posso, mas não quero. Há quatro outros professores que dão aulas da mesma matéria em espanhol. Por que o aluno não muda de sala em vez de pedir que eu troque minha língua?”, diz Laura. Ela sente o mesmo inconformismo quando taxistas fingem não entender que ela quer ir a um carrer, como são designadas as ruas em Barcelona, em vez de ir a uma calle, como se diz em espanhol. “Há quem peça desculpas ao motorista. Nesse instante, é possível ver toda a força da violência simbólica. Não quero pedir desculpas por ser quem eu sou, falar minha língua e viver no país onde vivo. Costumo dizer a meus colegas latino-americanos que eles ganharam a guerra de independência contra a Espanha e nós a perdemos. Mas nossa aspiração é a mesma”, desabafa a professora.
O orgulho que os catalães têm por sua língua, que por vezes se parece muito com o português, e sua criatividade exuberante sempre foi algo celebrado pelo mundo e pelo resto da Espanha. Entre seus patrimônios estão gênios inigualáveis como o arquiteto Antoni Gaudí e o pintor Joan Miró. Eles também são donos de um vasto calendário de celebrações na cozinha, que tem mais de vinte doces para dias de festa, como os bolinhos de chuva da quaresma. A região é a maior produtora de cava, um espumante com denominação de origem, cujas marcas mais famosas são Codorníu e Freixenet. Quando são instados a definir o que é ser catalão, eles geralmente se dizem abertos aos imigrantes, classificam-se como os herdeiros de uma tradição democrática mais antiga que a da Espanha e alegam ser pacifistas acima de tudo. Nos últimos anos, contudo, as autoridades da Catalunha estiveram em conflito constante com a monarquia, o governo e o Congresso espanhóis, com sede em Madri. No fim de outubro, a teimosia dos separatistas levou o governo central a intervir na região. VEJA esteve na Catalunha durante nove dias para entender como a identidade catalã extrapolou para a pior crise política da história recente da Espanha.
Na boca das lideranças pró-independência, a reivindicação pela separação da Catalunha ganhou um contorno romântico. “A diferença entre o que é ser catalão e o que é ser espanhol é o projeto de nação. A Catalunha tem o seu, mas o único projeto da Espanha é não negociar com os catalães. O nacionalismo espanhol defende uma Espanha monolíngue, monocultural, que se mostre para o mundo como uma nação central. Essa não é a nossa realidade”, diz Adrià Alsina Leal, ativista pró-independência. Para muitos dos habitantes de Barcelona e cidades próximas, o atual governo central, presidido pelo Partido Popular (PP), mantém muitos dos erros e vícios da longeva ditadura de Francisco Franco, que foi de 1939 a 1975.
Uma vítima especial do centralismo pregado por Franco foi o catalão, uma língua românica que surgiu entre os séculos VIII e X. No franquismo, o idioma foi proibido nas escolas e nos meios de comunicação. Por isso, boa parte dos catalães alfabetizados durante a ditadura ainda escreve mal a língua que falava em casa ou, de forma clandestina, nas escolas. Após a morte de Franco, em 1975, a língua voltou aos espaços públicos. As placas do metrô de Barcelona trazem primeiro as informações em catalão e, só depois, em espanhol e inglês. Há programas de televisão, jornais e livros na língua local, e as escolas usam o catalão como idioma básico. Em 2012, uma proposta do ministro da Educação, José Ignacio Wert, de aumentar o uso do espanhol nas salas de aula gerou alvoroço. Em meio à polêmica, o engenheiro Josep Maria Ganyet, de 52 anos, adaptou um famoso jargão inglês e tuitou “Keep calm and speak catalan” (“Fique calmo e fale catalão”). Pôsteres e camisetas com a frase são vendidos até hoje em Barcelona. “As pessoas são orgulhosas do modelo escolar que temos. Custou muito termos uma escola em catalão, e qualquer mudança soa como ameaça”, diz Ganyet.
Os unionistas, que são contra a separação, afirmam que as escolas doutrinam as crianças a favor da independência. “Há livros que ensinam uma história falsa da Catalunha, dizem que os catalães sempre foram um povo oprimido pelos espanhóis. As crianças desenvolvem um sentimento de ódio à Espanha, que se traduz nessa vontade de independência”, diz Mariano Gomà, presidente da Sociedade Civil Catalã, que organizou uma marcha que reuniu 300 000 pessoas a favor da união nacional, em outubro. Para a acusação de manipulação ideológica fazer sentido, seria necessário que os jovens, educados durante o período democrático, fossem os mais insatisfeitos com o governo espanhol. Essa hipótese é contestada pelos líderes independentistas. “As pessoas que estudaram sob o franquismo e na democracia apresentam a mesma curva de mudança de opinião a favor do independentismo. Como esse crescimento ocorre em todas as faixas etárias, não se pode dizer que ele seja resultado de uma doutrinação nas escolas”, diz o ativista Adrià Leal.
Apesar de as rixas entre a Catalunha e o governo espanhol serem antigas, a inflexão a favor do atual movimento de independência ocorreu nos últimos dez anos. Em 2010, apenas 12% dos habitantes da região diziam se sentir somente catalães, e não espanhóis. Em 2012, já eram 25%. A transformação nos ânimos está ligada a uma sequência de acontecimentos que teria empurrado para os braços do movimento de independência aqueles que, até então, defendiam apenas mais autonomia. Em 2006, a Catalunha aprovou um novo Estatuto de Autonomia, que foi parcialmente derrubado em 2010 pelo Tribunal Constitucional espanhol, após uma reivindicação do PP de que se tratava de uma “Constituição paralela”. Nesse meio-tempo, a crise financeira atingiu a Espanha, e com ela cresceu o questionamento dos catalães sobre o sistema de divisão de recursos — a Catalunha abarca 16% da população espanhola, mas é responsável por cerca de um quinto do PIB e um quarto das exportações. A partir de 2012, desentendimentos com Madri sobre a aplicação de leis locais e embates sobre o uso da língua fortaleceram correntes pró-independência.
O ápice do movimento ocorreu em 1º de outubro, quando 43% dos catalães foram às urnas, numa votação classificada por Madri como ilegal, para apoiar a independência. A intervenção do governo espanhol e a violência dos policiais contra os que foram votar tornaram-se poderosos argumentos a favor dos separatistas. Esse desgaste tende a se aprofundar com a prisão, na semana passada, de vários políticos independentistas. “Se tivessem oferecido mais autonomia aos catalães, como o direito que os bascos têm de recolher impostos, a Espanha não estaria na bagunça que está”, diz David McCrone, professor de sociologia da Universidade de Edimburgo e especialista em identidade nacional. “O sentimento de pertencimento não implica ‘independência’, mas, quanto mais reacionárias são as ações do Estado, mais provável é que uma identidade nacional se torne ‘política’ e se alinhe com a ideia da independência.”
Para os homens e as mulheres de negócios, acostumados a conversar com os demais espanhóis e com o mundo inteiro, os separatistas extrapolam a narrativa cultural. Desde que as disputas se agravaram, mais de 2 000 empresas deixaram a Catalunha com medo de perder negócios. “É evidente que há valores propriamente catalães, mas também queremos ter valores espanhóis e europeus, e estar mais presentes no mundo”, diz Josep Lluís Bonet, presidente da Freixenet, cujos espumantes envelhecem a 40 quilômetros de Barcelona, em Sant Sadurní d’Anoia, município que teve destaque na renovação dos vinhedos e na melhoria da cava depois que uma praga atingiu a região no século XIX. Responsável por um negócio que vende 180 milhões de garrafas por ano, Bonet se preocupa com a insegurança jurídica causada pela declaração de independência e com a eventual perda de competitividade diante da ameaça de que, independente, a Catalunha estaria fora da União Europeia (UE). O sentimento é compartilhado por Diego Montoro, dono de uma casa de massagens no calçadão de Las Ramblas. “Os separatistas não ouvem argumentos contrários, como os de que empresas podem deixar a região ou de que teremos de sair da UE. A posição deles é visceral.”
Apesar de os separatistas terem chegado a declarar a independência, sua situação está longe de ser favorável. Carles Puigdemont, presidente da Catalunha afastado por Madri, está autoexilado na Bélgica e responde por crimes que podem render até trinta anos de prisão. Nove integrantes do primeiro escalão de seu governo estão presos. Para complicar, o independentismo ainda não conseguiu negociar entre os partidos uma lista única de candidatos para a eleição de 21 de dezembro, que vai escolher o novo Parlamento regional e será um termômetro mais fiel de como está o humor dos catalães — se a favor ou contra a independência. As pesquisas mostram um ambiente conturbado e dividido. Seis em cada dez catalães acham que o referendo, do qual participou menos da metade dos eleitores, não era o suficiente para declarar a independência. Uma saída para voltar a unir os catalães é negociar mais autonomia em relação à Espanha. Um divórcio seria traumático.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição nº 2556