Epidemia de falências
Agora é a vez de os habitantes do Rio Grande do Norte sofrerem na pele as consequências dramáticas da inabilidade de seus governantes
Virou uma triste rotina. A inépcia administrativa dos políticos explode no colo da população. Até pouco tempo atrás, isso se dava na forma de precariedade dos serviços prestados nas áreas de saúde, educação e transporte; mas, cada vez mais, a crise financeira dos estados interrompe a realização de outras atividades básicas do poder público. Desta vez, foram moradores e turistas do Rio Grande do Norte que se viram obrigados a enfrentar, amedrontados, a escalada da violência nos últimos dias de 2017, depois que policiais militares e civis decidiram entrar em greve em protesto contra o atraso no pagamento dos vencimentos de novembro e dezembro, além do 13º salário. Foi uma situação que se repetiu, ao longo do último ano, com servidores do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e do Espírito Santo, quase sempre motivada pelo atraso salarial — no caso capixaba, policiais reclamaram da falta de reposição salarial da inflação. O número de crimes violentos (como homicídios) subiu 40% no Rio Grande do Norte nos últimos doze dias do ano passado, em relação ao mesmo período de 2016. Mais de 100 assassinatos foram registrados desde o início da paralisação. A situação só foi controlada com o envio de 2 800 homens das Forças Armadas para as ruas de Natal e Mossoró, a segunda maior cidade do estado. “Todos os indicadores, seja de morte, roubo, assalto, seja o que for, caíram verticalmente”, disse o ministro da Defesa, Raul Jungmann, ao avaliar a atuação dos militares.
Robinson Faria (PSD), governador potiguar, tentou resolver a crise da forma política usual: sem recursos para honrar os salários, mas sem tomar medidas estruturais que buscassem equilibrar as finanças estaduais, procurou articular um socorro emergencial de 600 milhões de reais diretamente com o presidente Michel Temer. “Estou focado em todas as medidas necessárias para que nada impeça que esses recursos cheguem ao nosso estado e às contas dos servidores o mais rápido possível”, disse o governador durante uma visita a Brasília, antes do Natal. Mais tarde, Faria chegou até a anunciar em rede social a liberação dos recursos. Dias depois, o Ministério da Fazenda vetou o repasse. O argumento foi um parecer do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União que desaprova a operação, por afrontar o princípio de equidade na transferência de recursos federais entre os estados. De fato, prestar ajuda ao Rio Grande do Norte — ou a qualquer outro estado em sério aperto financeiro — de forma intempestiva abriria um precedente perigoso para a União. Foi justamente para evitar essa ameaça e o desperdício no uso do dinheiro dos contribuintes que o Ministério da Fazenda encampou a aprovação no Congresso, no ano passado, de uma lei que institui um regime especial para a recuperação de estados em dificuldades. Em linhas gerais, exige-se que os governadores e deputados estaduais (que precisam dar o seu aval às medidas propostas) façam a lição de casa para equilibrar as contas locais antes de receber centenas de milhões de reais do governo federal. Caso contrário, sem um compromisso assumido em contrato nem o respaldo da lei, esses repasses milionários serviriam só como remendo para uma crise mais profunda.
Pelo regime aprovado, estados em grave crise financeira só terão ajuda do governo federal (como a redução das parcelas de sua dívida com o Tesouro ou a autorização para que contraiam novos empréstimos no setor privado, com a garantia da União) se cumprirem uma série de pré-requisitos para pôr as finanças em ordem. São exigidas medidas como a proibição da criação de vagas pela máquina governamental, o congelamento de reajustes salariais além daqueles previstos em lei federal, a redução de isenções tributárias, o aumento da alíquota de contribuição na previdência local e um plano de privatização. O primeiro estado a aderir ao regime foi o Rio de Janeiro. O governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) assinou o acordo em setembro e deu o tom do discurso. “É um momento em que a gente celebra dureza, e não fartura. O estado vai fazer um ajuste profundo”, disse Pezão na ocasião, em relação às medidas, que devem causar um impacto positivo de 27,3 bilhões de reais até 2020, entre o aumento de receitas e o corte de despesas.
Nos últimos dias do ano passado, o Rio Grande do Sul aderiu ao regime. “A caminhada é longa, mas os passos que estamos dando são consistentes e responsáveis”, disse o governador Ivo Sartori (PMDB) na cerimônia de assinatura do acordo com o governo federal. A adesão, no entanto, ainda precisa ser ratificada pela Assembleia Legislativa. Muitos deputados gaúchos insistem em negar a gravidade da situação e preferem recorrer à retórica de perda da autonomia do estado, ignorando males reais como o atraso de salários dos servidores, a interrupção do atendimento médico à população e a falta de policiamento nas ruas, para citar apenas três efeitos do caos financeiro.
A recessão econômica explica apenas parte da crise nos estados. No passado, governadores e deputados aproveitaram um momento temporário de aumento das receitas para contratar despesas de forma permanente. Ou negligenciaram a escalada irrefreável dos gastos com aposentados. Essa equação criou um desequilíbrio profundo na maneira como os estados brasileiros são administrados. De 2010 a 2016 (ano do último dado consolidado pelo Tesouro), as receitas somadas de todos os 26 estados, mais o Distrito Federal, ficaram praticamente estáveis como proporção do produto interno bruto (PIB), enquanto as despesas com a folha salarial de servidores ativos e aposentados aumentaram o equivalente a 6,5 pontos porcentuais da receita líquida e os gastos com a administração pública subiram outros 3,4 pontos porcentuais. São recursos que tiveram de ser sacrificados em outras áreas. Em nove estados, as despesas com o funcionalismo igualam ou superam 60% do orçamento. Esse limite foi determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, com o propósito de evitar o comprometimento de parcela excessiva dos recursos com essa finalidade, uma vez que existem compromissos ainda mais sagrados que competem aos estados, como o atendimento de saúde, o ensino fundamental e médio e a segurança pública (veja a tabela ao lado).
A frágil saúde financeira dos estados não permite antever uma solução rápida para a crise. Os acordos firmados pelos governos fluminense e gaúcho são o prenúncio de um ajuste duro que se impõe diante de uma realidade que veio para ficar, mas ao menos permitem enxergar um horizonte. Espera-se que o governador Robinson Faria e os deputados do Rio Grande do Norte — além das autoridades de outros estados em apuros — encarem as dificuldades e não apelem para subterfúgios. Só assim se estancarão os efeitos dramáticos da epidemia de falências dos estados brasileiros.
Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2018, edição nº 2564