Gigante atormentado
Em'Uma História Cultural da Rússia', o inglês Orlando Figes apresenta uma nação socialmente fraturada — mas sempre grandiosa nas suas expressões artísticas
Os dois dedos são erguidos em desafio: com esse gesto, Morozova, mulher de um boiardo (membro da velha nobreza feudal), está rejeitando as reformas litúrgicas que a Igreja Ortodoxa Russa instaurou, nos anos de 1660, para aproximar-se da igreja grega — entre as mudanças do ritual, estava o sinal da cruz, que passava a ser feito não mais com dois, mas com três dedos. Mais de 200 anos depois, Vassili Surikov retratou, em cores exuberantes, o momento em que Morozova é conduzida, de trenó, para a prisão, onde morrerá sob tortura. Em Moscou, o pintor encontrou modelos para seu quadro em um bairro de “Velhos Crentes”, como eram chamados aqueles que ainda mantinham os rituais antigos. Oriundo de uma família de cossacos da Sibéria, Surikov era próximo dos eslavófilos, grupo de intelectuais que acreditavam que a Rússia era, por destino, eslava e cristã, e seu quadro alinhava-se a essa concepção. No entanto, em 1884, quando o quadro foi exposto, os críticos da política reacionária do czar Alexandre III — que revertera a abertura liberal de Alexandre II, assassinado em 1881 — viram na obra de Surikov um grito democrático contra o poder centralizador da Igreja e do Estado. Parece que não há nação da Terra em que o sentido da arte e da história seja disputado de modo tão renhido quanto na Rússia. O portentoso panorama das artes e do pensamento traçado pelo inglês Orlando Figes em Uma História Cultural da Rússia é um inventário de conflitos em torno da cambiante e elusiva alma do povo russo.
Professor da Universidade de Londres, Figes é um especialista em história russa que tem se debruçado sobretudo sobre o período soviético, tema de A Tragédia de um Povo e Sussurros (ambos publicados pela Record, o primeiro deles, esgotado). Uma História Cultural..., obra de 2002 só agora lançada no Brasil, é mais amplo: o ponto zero é a construção de São Petersburgo por Pedro, o Grande, no início do século XVIII, e de lá a história segue até os anos 1970, parando antes da abertura de Mikhail Gorbachev. São três séculos de uma das culturas mais vigorosas do planeta: entre figurões e figurantes do livro, desfilam os escritores Nikolai Gogol e Fiodor Dostoievski, os artistas Isaac Levitan e Vassili Kandinski, os compositores Modest Mussorgski e Igor Stravinski, os cineastas Serguei Eisenstein e Andrei Tarkovski. Com narrativa desenvolta e argumentação cristalina, Figes vai traçando a intrincada rede de amizades e rivalidades, de diferenças e afinidades estéticas e políticas que uniam e separavam todos esses personagens geniosos e geniais.
São Petersburgo é ela mesma um nó das disputas russas: foi erguida pelo czar no esforço de aproximar do Ocidente a sua nação transcontinental, geograficamente dividida, pelo marco convencional dos Montes Urais, entre Europa e Ásia. No século XIX, uma cisão da intelectualidade russa se daria entre os eslavófilos, com sua ideia autossuficiente da singularidade russa, e os ocidentalistas, desejosos de uma Rússia mais europeia e iluminista. É uma divisão fundamental, mas não a única: mais traumática será a fratura social entre a elite que falava francês — famosamente retratada no monumento literário de Leon Tolstoi, Guerra e Paz — e os camponeses que viviam sob um cruel regime de servidão, só abolido em 1861. Um dos heróis de Figes não é artista nem escritor, mas representa uma inflexão cultural importante da geração de nobres que, depois de lutar ombro a ombro com as classes subalternas na guerra contra o invasor francês em 1812, se sensibilizou com o drama dos camponeses: inspiração para um personagem de Guerra e Paz, Serguei Volkonski participou do movimento militar que tentou forçar reformas liberais, em 1826, e por isso foi exilado na Sibéria pelo czar Nicolau I.
A descoberta do povo e da cultura popular representou um difícil aprendizado para a intelligentsia (palavra russa). Em esforço quase etnográfico, o pintor Ilia Repin viajou mais de 700 quilômetros, a partir de Moscou, para conviver com os personagens exauridos mas cheios de dignidade de Os Barqueiros do Volga (1873). O realismo do quadro — apreciado por Dostoievski — surpreendeu até democratas e populistas que tinham uma ideia idealizada do povo. Tolstoi, aliás, elevou a figura do camponês à altura da santidade. O escritor, que era conde, tentou se vestir e trabalhar como os mujiques de suas propriedades, mas não abdicava de certos privilégios senhoriais — como o jantar servido por serviçais de luvas brancas. Repin, que pintou mais de um retrato de Tolstoi, considerava-o um hipócrita.
As reformas democratizantes e a monarquia parlamentar sonhada pela geração de Volkonski nunca se realizaram, e as tensões sociais explodiram violentamente na revolução de 1917. A um breve momento de efervescência modernista nos primeiros anos bolcheviques, seguiu-se a ortodoxia estatal do “realismo socialista”. As heroínas dos capítulos finais de Uma História Cultural… são duas poetas. Anna Akhmatova, mesmo sob repressão e em condições de pobreza humilhante, nunca deixou sua amada São Petersburgo; Marina Tsvetaieva tentou o exílio em Paris, não se adaptou e acabou voltando para a União Soviética de Stalin em 1939 — e lá se suicidou dois anos depois. A Rússia que emerge do livro de Orlando Figes é uma nação atormentada e trágica. O testemunho que seus escritores, artistas, músicos deixaram desse tormento e dessa tragédia nunca foi menos que grandioso.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2017, edição nº 2550