Glamour marginal
Uma retrospectiva revela quanto há de lenda cultivada e de talento real na obra do ex-artista de rua Jean-Michel Basquiat, morto há trinta anos
O jovem pintor negro vivia aprisionado no porão da poderosa marchande que o obrigava a produzir telas em série para consumo da clientela grã-fina? Os rumores sobre as condições de trabalho degradantes a que Jean-Michel Basquiat (1960-1988) estaria submetido na Nova York do início dos anos 80 eram exagerados. Pintor que saltou da pichação anônima de muros para o estrelato no circuito milionário das artes na metrópole americana, Basquiat detestava a futilidade dos potenciais compradores que faziam procissões para conhecer sua natureza selvagem e desdenhava da lenda do artista negro escravizado: na verdade, o tal porão era um espaçoso ateliê no SoHo nova-iorquino, onde ele trabalhava a peso de ouro para a marchande, ouvindo música e fumando maconha com os amigos. “Se eu fosse branco, diriam que estava fazendo uma residência artística”, declarava.
A lorota era delirante, mas conveniente. Peça por peça erigiu-se, assim, a mística do pintor que saiu da sarjeta rumo à ascensão fulminante. Da noite para o dia, ele se transformou em amigo do artista pop Andy Warhol, colecionou namoradas como a então novata Madonna e mergulhou em prazeres caros, de caviar a ternos de grife. Foi um apogeu brevíssimo: aos 27 anos, Basquiat não resistiu a uma overdose de speedball, um coquetel de cocaína e heroína. O artista — que, além de pintar, tinha uma barulhenta banda experimental — viveu e morreu à maneira de roqueiros famosos. Seu desaparecimento precoce o bafejaria com a aura de gênio rebelde dos pincéis. A retrospectiva Jean-Michel Basquiat — Obras da Coleção Mugrabi, que entra em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) nesta quinta-feira 25, aniversário de São Paulo, oferece a chance de reavaliar o fenômeno a uma distância temporal segura: depois de trinta anos, a obra de Basquiat mantém alguma relevância ou caiu na vala comum dos modismos da arte contemporânea?
Que as multidões e os cifrões associados a Basquiat são tão profusos quanto os dreadlocks de seus cabelos, não há dúvida. Em maio do ano passado, um quadro seu foi vendido por 110,5 milhões de dólares, o maior valor já alcançado num leilão de arte nos Estados Unidos. A mostra nacional provocou uma inédita queda de braço entre instituições paulistanas: o Masp planejava havia tempos uma grande exposição do artista, mas desistiu quando o CCBB, de surpresa, anunciou que abriria antes a sua, com mais de oitenta trabalhos pertencentes ao colecionador israelense Jose Mugrabi. O custo da exposição, que passará ainda por Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, está na casa dos 15 milhões de reais (na maior parte, vindos de leis de incentivo). “Hoje, é possível dizer que Basquiat não foi só uma moda. Ou, pelo menos, é uma moda que está durando”, afirma o curador Pieter Tjabbes.
O glamour marginal de Basquiat tem certo lastro na realidade, mas também pitadas de romantização. Filho de mãe de ascendência porto-riquenha e pai haitiano, ele foi o primeiro pintor negro a entrar para a elite do ofício. Não vinha, contudo, da pobreza: o pai era um contador remediado, o que permitiu ao jovem Basquiat frequentar boa escola e formar um notável acervo de discos, livros e gibis. Se morou nas ruas por uns tempos, foi pela decisão de fugir de casa para curtir uma vida regada a drogas e rock’n’roll. Rufar tambores para dizer que Basquiat foi o primeiro grafiteiro a firmar seu talento na arte estabelecida é distorcer os fatos. Ele não fazia propriamente grafite: em parceria com um amigo, passou coisa de um ano pintando frases em muros de Nova York, sob a assinatura SAMO (numa tradução limpinha, “sempre a mesma porcaria”). Na primeira oportunidade, migrou para a pintura e renegou a condição de grafiteiro.
Desde cedo, Basquiat transbordava ambição. “Ele dizia ao pai que um dia seria famoso”, conta o curador Tjabbes. O curto período na pichação revela que Basquiat sabia bem como atingir esse objetivo: enquanto os grafiteiros comuns preferiam agir na periferia, ele deixava suas mensagens enigmáticas nos arredores das galerias descoladas. Quando o anônimo SAMO virou pintor, o tão valorizado epíteto de artista de rua “autêntico” naturalmente o beneficiou. Depois de morto, Basquiat teve sua figura burilada em um filme hagiográfico dirigido pelo artista e amigo Julian Schnabel. Lançado em 1996, Basquiat — Traços de uma Vida mostrava-o como um espírito livre e meio ingênuo que se decepcionava com as rasteiras dadas pelas cascavéis e jararacas do mundo das artes.
Real ou maquiada, a imagem tem um peso inegável na valorização do pintor. O que não é, em si, indecoroso: de Van Gogh a Jackson Pollock, a vida pessoal às vezes informa uma obra inteira e acaba por traduzir o Zeitgeist em que o artista viveu. Tratando-se de Basquiat, ela exprime o paradoxo de uma Nova York então em decadência urbana, mas culturalmente vibrante.
Tudo bem: sua obra muitas vezes exibe uma feiura à beira do mau gosto. Mas seria injusto vê-la somente como mais um exemplo da descartabilidade e do vazio de qualidade na arte contemporânea. Seu neoexpressionismo curto e grosso ia contra a afetação intelectualizada dos artistas conceituais da década de 70. E a maioria dos trabalhos que serão vistos no Brasil — muitos deles imensos — prova que Basquiat não perdeu certo frescor e voltagem emocional, capazes de arrebatar principalmente os jovens.
Talvez isso se dê porque a verdadeira empulhação perpetrada pelo artista foi, digamos, do bem: sua simplicidade quase primitiva era calculada. Embora jurasse não frequentar museus, Basquiat era levado a esses lugares desde a infância pela mãe. Voraz consumidor de livros, tinha como bíblias um volume de ilustrações de Leonardo da Vinci, obras sobre símbolos antigos, poesia beat e um manual de anatomia. As influências ficavam escancaradas na obsessão por palavras, ícones, caveiras e detalhes anatômicos em suas colagens caóticas. Ele se gabava de que seu maior desafio era disfarçar que sabia, sim, desenhar. De marginal, Basquiat só tinha a casca.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566