História cultural das fake news
As notícias falsas sempre existiram, mas jamais foram tão velozes
“O rumor é a mais veloz das pragas malignas”, escreveu Virgílio, no Livro IV da Eneida. “Horrendo monstro de pés rápidos, desconhece o sono, rasga a noite e aterroriza cidades inteiras com sua mistura indiferente de mentiras e verdades.” Não precisamos recorrer à mitologia para constatar que a propagação de notícias falsas é um costume tão antigo quanto a palavra escrita — e talvez coetâneo de toda comunicação humana. Platão, na República, apregoou a disseminação de “nobres falsidades” como necessário cimento social para sua utopia de déspotas filosóficos. Em 1522, o grande e desbocado poeta Pietro Aretino tentou tumultuar as eleições papais publicando infâmias imaginárias — e devidamente metrificadas — sobre os candidatos; na Inglaterra e na França do século XVIII, caluniadores profissionais distribuíam misturas bem dosadas de notícias reais com ficções comprometedoras, em temíveis panfletos que vindicavam desavenças pessoais ou inimizades políticas. Ou seja: as fake news — expressão vaga, que adoto com relutância — não surgiram com as redes sociais. Por outro lado, um breve lance de olhos ao cotidiano virtual é suficiente para demonstrar que as novas tecnologias alteraram a forma (ou a rapidez) com que essa antiga praga nasce, apodrece e germina.
“O que é a verdade?”, indagou Pilatos a Jesus Cristo; mas não teremos espaço para responder ao legado da Judeia. Fiquemos, então, com o seguinte truísmo: com todas as ferramentas de pesquisa hoje disponíveis, é relativamente fácil, mesmo ao mais distraído consumidor de rumores, detectar informações suspeitas ou infundadas. Ainda assim, a mentira — ou sua irmã mais perniciosa, a meia-verdade — tende a prosperar. Em março, a revista Science divulgou uma pesquisa assustadora sobre a propagação de notícias inexatas na internet. Após analisar 3 milhões de compartilhamentos no Twitter entre 2006 e 2017, um grupo de cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts concluiu que informações adulteradas têm probabilidade de disseminação 70% maior que as notícias simplesmente factuais. A acreditarmos na pesquisa, basta que uma notícia seja falsa para que tenha mais possibilidade de triunfo. É como se o “horrendo monstro de pés ligeiros” fosse uma sereia cuja sedução aumenta conforme o tom do falsete.
Os mesmos mecanismos que permitem a multiplicação quase instantânea da falsidade podem servir para desbancá-la e desmascará-la, com idêntica rapidez — mas isso não resolve o problema, pois quem hoje é paladino da verdade pode ser o propagador de notícias falsas da semana que vem. Para derrotar o monstro, é preciso admitir que ele existe — e que está no meio de nós. Não somos inocentes; todos gostamos, às vezes, de uma pitada confortável de imprecisão, de uma cálida meia-verdade que nos afague as crenças. Dessa volúpia inata à espécie, só nos salva o ascetismo mental: resistir à rumorosa sereia é lutar contra a própria natureza humana. Uma luta sem quartel — e que, por definição, não acabará jamais.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575