Não era bravata. Donald Trump decidiu levar adiante suas ameaças de guerra comercial contra a China. Muitos acreditavam que a estratégia do americano era ficar no blá-blá-blá e assim conseguir concessões, na base da “chantagem”, como resumiu um ministro chinês. Pode haver um bom componente de blefe, mas o fato é que, em julho, deve entrar em vigor nos Estados Unidos uma sobretaxa de 25% sobre um total de 50 bilhões de dólares em produtos chineses vendidos no mercado americano. Trump encomendou ainda, na semana passada, estudos para impor uma sobretaxa de 10% a outros 200 bilhões de dólares em importações originárias do país asiático. Por fim, disse que, se a China não elevar suas importações de produtos americanos, as barreiras poderão ser expandidas para um total de 450 bilhões de dólares — o equivalente a 90% das mercadorias made in China vendidas nos Estados Unidos.
Nos bastidores, os asiáticos buscavam maneiras de evitar o confronto, mas foram apanhados de surpresa pelas novas ameaças de Trump. Não restará à China outra opção a não ser responder na mesma moeda — o que pode resultar numa escalada em que se conhece o início mas se desconhece o fim. Os alvos da retaliação deverão ser mercadorias de indústrias importantes nos estados onde se concentra a base eleitoral do presidente americano. Podem entrar na lista, por exemplo, máquinas e carros, além de produtos agropecuários, entre eles a soja. Nesse quesito, a guerra comercial poderá até trazer algum benefício para os produtores brasileiros. Os ganhos, porém, serão modestos, porque quase todos os contratos foram fechados meses atrás. “Se houver algum ganho, será no futuro”, afirma o economista Daniel Amaral, da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). Ao mesmo tempo, a alta elevará o preço da ração usada na criação de frangos e suínos. “Os efeitos colaterais são ruins para a produção de carnes”, disse o ministro da Agricultura, Blairo Maggi. Trata-se de uma adversidade a mais para um setor que foi castigado pela paralisação dos caminhoneiros e pelo tabelamento dos fretes. Para piorar, existem consequências difíceis de ser antecipadas. Parte da soja americana poderá ser exportada para a Europa, por exemplo, retirando mercado da brasileira. O mesmo raciocínio vale para as carnes de frango e suínos. As indústrias nacionais que fazem negócios com a China e com os Estados Unidos também acompanham com apreensão os lances desse embate, porque temem perder vendas ou ter dificuldade para encomendar certos componentes — e tudo sem falar na instabilidade e na insegurança, que nunca trazem benefício a ninguém. Segundo o consultor Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior e sócio da consultoria Barral M Jorge, trata-se de um receio compreensível, numa economia internacional integrada, na qual as mercadorias não são, na verdade, produzidas em um único país, mas sim a partir de componentes e peças fabricados em vários locais. No cômputo geral, portanto, poucos sairão ganhando se a guerra for adiante.
Consultorias estimam que fatalmente haverá desaceleração no ritmo de crescimento da economia global, como reflexo da redução nas transações comerciais entre as duas maiores potências do planeta. A tensão bateu nos mercados. As bolsas em todo o mundo reagiram negativamente depois de Trump revelar sua intenção de ampliar as barreiras contra a China. Os investidores, que até recentemente não acreditavam que a troca de farpas pudesse descambar para uma guerra, ficaram apreensivos com as possíveis consequências do confronto. Empresas dos dois lados do Pacífico serão penalizadas. Grandes grupos americanos, como a Boeing e a Caterpillar, estão entre os que mais perderam valor nos últimos dias, porque poderão ser alvo de retaliação.
Lobistas das multinacionais americanas tentam dissuadir o governo dos Estados Unidos porque temem as consequências, como a imposição de tarifas ou barreiras burocráticas para operar no país asiático. Um dos executivos mais preocupados é Tim Cook, presidente da Apple, a companhia mais valiosa do mundo. Embora Trump tenha afirmado que os iPhones (quase todos fabricados na China) não serão sobretaxados, Cook teme sofrer os efeitos de eventuais retaliações, como a dificuldade de importar componentes necessários para produzir os celulares. Trump, até agora, permanece irredutível.
Observando apenas os números da balança comercial, os EUA têm um déficit enorme com a China, perto de 400 bilhões de dólares ao ano. É verdade também que muitos produtos à venda nas lojas americanas são estampados com o made in China. Para Trump, a maneira de fazer a América grande novamente seria combater as importações chinesas. No mundo real, as coisas não são tão simples. Um bom exemplo é o iPhone. Apesar de ser “feito na China”, ele é projetado na Califórnia e montado com peças originárias de diversos países. A maior parte dos lucros fica com a Apple, e os empregos com salários maiores estão nos Estados Unidos. Como afirmava Steve Jobs, seria inviável economicamente produzir o aparelho em fábricas americanas.
“O argumento de déficit na balança comercial não faz sentido quando posto sob a perspectiva de uma cadeia produtiva mundial”, diz Welber Barral. No entanto, Trump e seus assessores parecem dominados pela ideia antiquada de que o comércio é um jogo de soma zero, no qual, para que um ganhe, o outro deve perder. Estudos comprovam que o comércio internacional, quando feito de forma aberta e colaborativa, pode ser favorável a todos. Na teoria dos jogos, diz-se que é um jogo de ganha-ganha. Se os americanos consideram que a China nem sempre joga de maneira justa — como no caso do respeito à propriedade intelectual —, existem outros modos de equilibrar a disputa, sem erguer barreiras que ameacem a economia mundial e prejudiquem suas próprias empresas.
Com reportagem de Bianca Alvarenga
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2018, edição nº 2588