Marcha para o progresso
Apesar da ameaça do protecionismo e do nacionalismo, o mundo está cada vez melhor para viver graças à preocupação coletiva com o bem-estar, diz Angus Deaton
Angus Deaton, professor da Universidade Princeton, é um dos mais influentes economistas do mundo em questões sociais. Em estudo recente, Deaton e a pesquisadora Anne Case, sua mulher, descobriram o inesperado aumento da taxa de mortalidade de homens brancos de meia-idade nos Estados Unidos, depois de quase 100 anos de queda. As causas estão ligadas à marginalização social de trabalhadores sem diploma universitário que ficaram desempregados por um longo período. É o segmento que ajudou a eleger o populista Donald Trump. Apesar desse fenômeno, o escocês naturalizado americano, ganhador do Nobel de Economia em 2015, discorda da onda de pessimismo representada pela ascensão de Trump e de políticos com discurso nacionalista. Argumenta que já houve períodos catastróficos, como as guerras mundiais, e diz que, a longo prazo, há uma força coletiva que guia o mundo rumo a progressos sociais como a melhora da qualidade de vida e a redução da pobreza. O fenômeno dá nome ao livro A Grande Saída (Editora Intrínseca), de 2013, cuja edição brasileira acaba de ser lançada. De Princeton, Deaton, aos 71 anos, deu a seguinte entrevista, por telefone.
O que é a grande saída que dá nome ao livro? É a libertação de milhões de pessoas que antes viviam na condição de prisioneiras da pobreza, com privação material, baixa expectativa de vida, doenças. Em todo o mundo, nos últimos 250 anos, milhões e milhões de pessoas ascenderam a padrões de vida mais elevados, com avanços na saúde e na educação. Os padrões de vida hoje são significativamente melhores que os de um século atrás. Um número maior de pessoas se livrou do risco de morte prematura e vive o bastante para usufruir a prosperidade. Além disso, o rápido crescimento econômico em muitos países desde a II Guerra Mundial ajudou a tirar centenas de milhões de pessoas da miséria. Recentemente, a China e a Índia são os maiores exemplos disso.
A onda de pessimismo mundial, com a ascensão de movimentos nacionalistas e protecionistas, sobretudo depois da vitória do Brexit e de Donald Trump, não abalou seu otimismo? Não, continuo otimista. Você citou dois fatos negativos. Mas Emmanuel Macron venceu as eleições na França, derrotando Marine Le Pen. Na Holanda, o partido de extrema direita não ganhou. Nesse período de 250 anos de que trata o livro, houve décadas em que coisas terríveis aconteceram: duas guerras mundiais, o holocausto, o Grande Salto para a Frente, na China, o vírus da aids e o seu impacto na expectativa de vida na África. Foram grandes reveses. A questão agora é se estamos à beira de um novo revés na história. Eu não sei a resposta. Mas, ainda que isso seja verdade, penso que, no longo prazo, o futuro será brilhante. O motivo pelo qual prosperamos nos últimos 250 anos é que passamos a contar com a determinação de nossa capacidade racional para solucionar problemas sociais, fazer progressos na qualidade de vida e perseguir a felicidade. Existe hoje a preocupação em tornar o mundo um lugar melhor. Há uma força coletiva que empurra o mundo nessa direção.
Apesar desse avanço, muitas pessoas ficaram para trás. São os chamados perdedores da globalização. O senhor acredita que, depois de Trump e do Brexit, os políticos passaram a focar a melhora da vida desses eleitores insatisfeitos? Não vejo sinais de que isso esteja ocorrendo, além da retórica. Políticos entenderam as vontades dos eleitores que não se sentem representados. Estão falando mais sobre o assunto, mas não estão fazendo nada para melhorar a situação.
Qual a ameaça à redução da pobreza e da desigualdade no mundo? Uma das questões sobre as quais eu não falo de forma suficiente no livro, mas deveria fazê-lo, é a mudança climática. Ela terá efeitos ruins para os mais pobres e provavelmente vai exacerbar a desigualdade. Os países ricos têm maior capacidade de mitigar as consequências negativas do que as nações mais pobres. O protecionismo é outra ameaça. A globalização trouxe enormes benefícios para milhões, bilhões de pessoas ao redor do mundo. Trouxe grandes benefícios também para os países ricos, como produtos que se tornaram muito mais baratos e acessíveis. Quem poderia imaginar, alguns anos atrás, que o avião mais comum em Newark, aeroporto da região de Nova York, seria fabricado no Brasil?
Desigualdade e pobreza costumam ser associadas à renda. O senhor diz que é uma definição incompleta. Por quê? Sou um discípulo de Amartya Sen (indiano que ganhou o Nobel de Economia em 1998). Ele passou a maior parte da vida tentando fazer as pessoas entender que o bem-estar não é apenas uma questão de dinheiro. A lista do que faz a vida valer a pena certamente inclui dinheiro, mas também muitas outras coisas. Saúde é uma delas, assim como educação, participação na sociedade, amizades, tudo aquilo que faça alguém sair da cama pela manhã e amar a vida.
É possível separar a desigualdade de renda da desigualdade de oportunidades? Penso que não. Uma das ideias que derivam da igualdade de oportunidades é assegurar que o sistema educacional funcione bem para crianças pobres, que lhes garanta boas chances de acesso. É importante também que a Justiça não atue de modo a favorecer as pessoas ricas. Mas não acredito que a busca pela igualdade de oportunidades seja suficiente. A própria desigualdade de renda pode pôr em risco as oportunidades. Ricos vão gastar muito dinheiro para reforçar as chances de que os seus filhos se saiam bem na vida.
A desigualdade é vista como algo necessariamente ruim. Mas o senhor fala de um lado positivo. Como distinguir a boa desigualdade da má? É mais complexo do que isso, porque a mesma desigualdade pode ter lados positivos e negativos. Alguém pode ficar rico graças a alguma inovação maravilhosa, mas essa mesma pessoa pode usar esse dinheiro de maneira política para prejudicar terceiros. Essa pessoa será um exemplo de boa e má desigualdade. Boa parte da desigualdade social nos Estados Unidos, e no mundo, tem a ver com indivíduos que buscam fazer o que chamamos de rent seeking, ou seja, persuadir o governo a lhes conceder favores especiais e privilégios. Pense na indústria farmacêutica fazendo lobby no Congresso americano e em como os seus executivos ficam ricos obtendo leis favoráveis aos seus negócios.
Por que o senhor critica a ajuda internacional oferecida aos pobres e miseráveis dos países africanos? O desenvolvimento econômico exige um contrato social entre o governo e a população. Essa é a base para o desenvolvimento. Isso se dá por meio da cobrança de impostos e dos gastos públicos. Por esse contrato, o governo tem a função de fazer algo pela população. Se esse governo é total ou amplamente financiado pela ajuda de outros países, então os políticos não terão incentivos para prestar atenção às reivindicações da população. O desenvolvimento não vai acontecer nessas circunstâncias. É o que vemos em países pobres.
Existem casos em que o governo tem dinheiro mas as políticas de combate à pobreza não são efetivas como se poderia esperar? Sim. Governos colonialistas, por exemplo, não têm interesse em ajudar os pobres, apenas em explorá-los. Ditadores também agem assim. A sua pergunta presume que todos os governos querem reduzir a pobreza. Não acho que isso seja verdadeiro. Todos os governos dizem que querem reduzir a pobreza, mas em muitos países não há nenhum interesse em fazê-lo na prática.
Considerando as experiências já realizadas no mundo, quais se mostraram mais eficientes para reduzir a pobreza e a desigualdade? O progresso pode produzir desigualdade. Se você é contra a desigualdade, é contra o progresso também? Temos, portanto, de ser muito cuidadosos ao falar em reduzir a desigualdade. Novas fugas de pessoas da pobreza trarão novas desigualdades, porque o progresso não ocorre em todos os lugares ao mesmo tempo. Sobre a pobreza, historicamente, o principal fator para reduzi-la é o crescimento econômico. Nisso a globalização ajudou muito.
Sendo o crescimento econômico o principal motor para reduzir a pobreza, o que pode ser feito em países em recessão, como o Brasil? Procuro ser muito cuidadoso e não fazer recomendações específicas para países. Nenhuma nação dispõe de recursos ilimitados. Dito isso, as questões básicas são sempre as mesmas: de onde vem o dinheiro público, quem paga por ele e quem se beneficia? Eis algo que cada país precisa definir, considerando seus valores, seu contexto e as políticas para isso.
O tema da desigualdade ganhou popularidade com o livro O Capital no Século XXI, do francês Thomas Piketty. Ele defende a criação de um imposto global sobre fortunas para reduzir a desigualdade. Qual a sua opinião? Não tenho interesse em falar de ideias cuja possibilidade de se tornarem realidade não existe. Mas um dos pontos importantes sobre Piketty é que seu trabalho atraiu enorme atenção sobre um tema fundamental, na medida em que muitas pessoas escondem sua riqueza em contas internacionais e paraísos fiscais. Essa foi uma das motivações para que ele sugerisse o imposto global. Mas, na verdade, seja em países ricos, seja nos pobres, essa riqueza está escondida e fora do alcance das autoridades fiscais.
O senhor e a pesquisadora Anne Case descobriram o aumento de mortes dentro de um grupo específico da população americana. Qual a explicação? Estudamos o grupo formado por homens brancos de meia-idade, não hispânicos, nos Estados Unidos. Constatamos que, depois de quase 100 anos de queda da mortalidade, essa taxa passou a subir em 1998. As mortes ocorrem principalmente de três formas: overdose de drogas e medicamentos, suicídios e doenças de fígado causadas pelo álcool. Chamamos o fenômeno de “mortes por desespero”. São quase sempre pessoas sem diploma universitário e sem boa formação educacional, indivíduos que se deram mal na vida nos últimos quarenta anos. Esse fenômeno, ocorrido em um país rico como os Estados Unidos, reflete o abandono, por um longo período, das pessoas que, por um motivo ou outro, ficaram para trás na sociedade.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542