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“Meu pai é um genocida”

Liliana Furió, 54 anos, documentarista, filha de um ex-chefe de inteligência da ditadura argentina

Por Johanna Nublat Atualizado em 20 out 2017, 06h00 - Publicado em 20 out 2017, 06h00

Sou filha de Paulino Furió, que tem 84 anos e cumpre prisão domiciliar perpétua por crimes cometidos na ditadura militar da Argentina (1976-1983). Na época mais feroz, ele estava em Mendoza e atuou como chefe de inteligência do comando do Exército da província. Já foi julgado, mas restam decisões de outros casos. (Em 2012, 2013 e neste ano, Paulino Furió foi condenado por crimes contra a humanidade, incluindo responsabilidade criminal por homicídio e privação abusiva de liberdade.) Recentemente, a Corte Suprema quis reduzir a pena de um repressor, como se ele tivesse cometido um delito comum. O benefício é chamado de 2×1, porque desconta em dobro cada dia que a pessoa ficou presa antes da sentença. Depois do repúdio popular, o Congresso votou uma lei que proibiu essa concessão. Estou completamente convencida de que a prisão é onde devem estar todos os genocidas. Meu pai foi julgado em um tribunal democrático. Devido à sua idade avançada e ao fato de estar doente, teve a sorte de nunca ter ido para a prisão comum.

Na minha infância em Mendoza, não fazia ideia do que se passava ao redor. Fui o mais feliz que se pode ser com um pai que maltrata e com uma mãe submissa. Mas, como todo ser humano, ele tinha aspectos contraditórios. Era muito bom provedor e não nos deixava faltar nada. Já adulta, eu sabia que meu pai havia integrado o Exército repressor dos anos 1970, mas tentei acreditar no que me diziam: que ele não tinha cometido crime e que em Mendoza a repressão não foi tão terrível como em Buenos Aires. Eu não soube perguntar sobre essas coisas a ele. Talvez não tenha querido fazê-lo. É muito difícil assumir os crimes cometidos pelo próprio pai.

No fim dos anos 2000, quando os casos de violência na ditadura estavam em julgamento, li as declarações dos sobreviventes que estiveram em Mendoza e me dei conta de que o alcance da repressão fora nacional. Até então, eu tinha tido divergências políticas com meu pai, porque sempre simpatizei com a esquerda, mas não tinha clareza sobre sua participação na repressão. Hoje não tenho dúvida de que ele cometeu esses delitos. É tão genocida quanto todos os seus companheiros.

Depois do 2×1, eu me juntei a outras filhas de genocidas que não concordam com os crimes cometidos pelos próprios pais e formamos o coletivo Histórias Desobedientes. Com apenas um mês de existência, reunimos cinquenta pessoas. Apareceram filhos na Holanda, na Alemanha, no Equador e em todo o interior da Argentina. Queremos reivindicar memória, verdade e justiça para os 30 000 desaparecidos da ditadura militar. Chegar até aqui foi um processo muito doloroso para nós. Todos temos muitos anos de terapia. Algumas filhas de genocidas decidiram tirar o sobrenome do pai. Não é o meu caso. Não me pesa o sobrenome, pois ele também era o do meu avô e o do pai dele, pessoas lindas. Não acredito que um sobrenome determine as convicções morais e éticas de uma pessoa. Tenho três filhas, que são meu orgulho, e sou casada com uma alemã, que amo profundamente. Tenho também irmãos que, de forma geral, concordam comigo, mas não querem se expor publicamente.

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Fiquei meses sem ver meu pai no passado, depois que lhe pedi que ajudasse quem ainda busca os corpos de seus familiares desaparecidos, e ele se negou. Disse que não estava arrependido e não ia contar nada. Foi muito frustrante. Atualmente, meu pai tem demência senil. Por isso, voltei para ajudá-lo. Não vou abandoná-lo em sua velhice, mesmo que repudie todo o horror. O que não posso é perdoar uma pessoa que fez parte de um Estado que torturou, sumiu com milhares de pessoas, estuprou mulheres e roubou bebês de prisioneiras. Mesmo que essa pessoa seja meu pai.

Depoimento a Johanna Nublat

Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2017, edição nº 2553

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