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Muito próximo e muito distante

A trajetória de Geovani Martins, o escritor cuja obra de estreia, sobre a vida nas favelas cariocas, já está vendida para publicação em nove países

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h49 - Publicado em 2 mar 2018, 06h00
O Sol na Cabeça, de Geovani Martins (Companhia das Letras; 112 págs.; 34,90 reais ou 23,90 reais em versão digital)
O Sol na Cabeça, de Geovani Martins (Companhia das Letras; 112 págs.; 34,90 reais ou 23,90 reais em versão digital) (//Divulgação)

Entre uma xícara de café preto forte — o segredo é coar duas vezes, ele explica — e um cigarro, Geovani Martins fala de sua passagem por uma escola pública no bairro da Gávea. “Achava tudo muito tedioso”, diz. Lembra apenas de um professor marcante — ensinava geografia e mostrou Tempos Modernos, de Charles Chaplin, a seus alunos. Quando chegou à 8ª série do ensino fundamental, ele já havia repetido o ano duas vezes, e estava certo de que repetiria de novo. Na casa onde Geovani morava, na favela do Vidigal, Neide, sua mãe, o acordava cedo, mas ele muitas vezes preferia ficar dormindo a ir para as aulas — até que, em um “papo reto”, comunicou à mãe a desistência definitiva dos estudos. Nos anos seguintes, viriam empregos e “bicos” variados — garçom de uma casa de festas infantis, carregador de bandeira e cartaz de um candidato a vereador, vendedor de bebidas na Praia de Ipanema. Hoje, aos 26 anos — e de volta ao Vidigal, depois de zanzar por outros bairros e favelas do Rio —, ele está se firmando no difícil ofício de escritor. Já coleciona feitos raros para um iniciante. A coletânea de contos O Sol na Cabeça, seu livro de estreia, que mal começa a chegar às livrarias brasileiras, já teve seus direitos vendidos a nove países. Editoras do prestígio da inglesa Faber & Faber e da francesa Gallimard interessaram-se pela crônica vibrante e vigorosa que os treze contos de Martins fazem da infância e da juventude nas favelas cariocas. “Eu esperava que o livro tivesse uma boa repercussão”, diz o autor. “Mas não que fosse fazer sucesso antes de sair.”

As circunstâncias biográficas de Geovani Martins, que nasceu em Bangu, na Zona Oeste do Rio, e já viveu na Rocinha, a maior favela do país, são naturalmente a matéria-prima de suas narrativas breves. “Espiral”, o segundo conto da coletânea — e um dos melhores —, parte da experiência frustrante que o autor viveu na escola pública. Os estudantes de instituições privadas próximas olhavam para Geovani e seus colegas como “bandidos uniformizados”, segundo lembra o contista. “‘Espiral’ vem desse desconforto de circular em certos lugares”, diz. Tal como o autor, o protagonista do conto desce da favela para estudar na Gávea, e não consegue conciliar essas duas realidades tão contrastantes. “É tudo muito próximo e muito distante”, lamenta. Mas a partir daí a história se descola do realismo mais comezinho: o personagem afinal decide se tornar a ameaça que os assustados moradores da Gávea imaginavam que ele seria, e passa a persegui-los pelas ruas. A história evoca, de longe, a vingança social de “O cobrador”, de Rubem Fonseca — embora sem a violência explosiva desse conto dos anos 70.

Fim do rolézim – Revista policial de jovens da periferia que foram à praia, em 2015: a realidade da ficção de Geovani Martins
Fim do rolézim – Revista policial de jovens da periferia que foram à praia, em 2015: a realidade da ficção de Geovani Martins (Eduardo Naddar/Agência O Globo)

A violência aparece em outros momentos do livro. Em “A história do Periquito e do Macaco”, um bandido usa uma prostituta “novinha” para atrair um policial truculento para uma armadilha; em “Estação Padre Miguel”, os jovens que fumam maconha nos trilhos do trem urbano são ameaçados por traficantes armados; em “Travessia”, Beto, um “bandido burro”, mata uma pessoa por uma razão trivial e acaba caindo em desgraça com a facção que desejava integrar. Mas o sangue não dá a tônica do livro. Ao lado desses relatos brutais, há um olhar sensível e generoso sobre a experiência de crescer em uma favela.

Somente um conto, “O rabisco”, é protagonizado por um pai de família — que tem uma recaída adolescente, arriscando-se em pichar um prédio. Nos demais, o herói é uma criança ou um jovem (do sexo masculino, invariavelmente). O problema econômico que mais aflige os protagonistas não é o sustento da casa — mas a falta de dinheiro para comprar maconha. “Rolézim”, o impactante conto de abertura que, segundo o autor, conferiu o tom do livro todo, começa por esse drama fundamental. No retrato desse universo juvenil, Geovani Martins esbanja maturidade na técnica literária. Sabe suspender o conto no momento crucial, antes que uma palavra a mais desfaça a tensão (é assim no tocante “Roleta-russa”, inspirado pela infância do escritor em Bangu). Versátil, passeia tanto pela linguagem-­padrão — ainda que pontuada por gírias — quanto pelo inventivo registro da fala urbana carioca (“Acordei tava ligado o maçarico!”, a primeira frase de “Rolézim”, expressa o que é um dia de calor no Rio com todo o poder de síntese de que às vezes só a língua popular é capaz).

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Sob intervenção – Moradora da Vila Kennedy, no Rio, passa pelos soldados: a população das favelas no meio da guerra
Sob intervenção – Moradora da Vila Kennedy, no Rio, passa pelos soldados: a população das favelas no meio da guerra (Carl de Souza/AFP)

Alfabetizado pela avó paterna, em Bangu, Geovani Martins diz que a paixão pela leitura nasceu das ocasiões em que sua mãe o levava, com os irmãos, para visitar a Bienal do Livro. Mais tarde, leu os best-sellers de Dan Brown e John Grisham que lhe eram legados por uma mulher para quem a mãe trabalhou como babá. Descobriu Machado de Assis em uma edição popular que sua irmã ganhara na escola, encantou-se com a crônica em Boca de Luar, de Carlos Drummond de Andrade, e depois foi apresentado a outros autores por algumas figuras tutelares que cruzaram sua vida — Márcio Januário, um professor de teatro que conheceu casualmente em um ponto de ônibus e que o levou à Flup, a Festa Literária das Periferias, e o poeta Carlito Azevedo. No ano passado, o escritor Antonio Prata falou aos editores da Companhia das Letras sobre o filho de faxineira que havia escrito um livro sensacional, e eis aí O Sol na Cabeça nas livrarias brasileiras — e em breve dando trabalho para tradutores chineses, holandeses, espanhóis.

Para o público leitor médio — e de classe média —, os contos de Geovani Martins podem ser a revelação de um mundo social que, como diz o personagem de “Espiral”, está muito próximo e muito distante — um desvendamento pela literatura que já se deu antes, por exemplo, com Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, ou com o já clássico Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus. Sim, os dramas cotidianos que o jovem autor examina também frequentam o noticiário, sobretudo em dias de intervenção federal na segurança pública do Rio, processo que o escritor observa com ceticismo e preocupação (“massacre” é a palavra que ele usa para definir o que acontece com a população que fica no fogo cruzado entre o tráfico e a lei). Mas há um frescor e uma premência de que só a literatura é capaz, e Geovani Martins faz bom uso desse potencial. Desigualdade deixa de ser apenas uma abstração sociológica quando se lê “Espiral”, e o preconceito contra as religiões de matriz africana (vigente inclusive entre negros e pobres) deixa de ser tema de interesse exclusivo de antropólogos quando se lê o belo “O Mistério da Vila”. Um livro potente como O Sol na Cabeça faz o leitor ver como pode ser próximo o que ele julgava distante, e vice-versa.


“Não sei por que a polícia age assim, mas tem de parar”

Processo de criação – O escritor e a máquina em que datilografou os treze contos do primeiro livro: 40 reais na feira de São Cristóvão
Processo de criação – O escritor e a máquina em que datilografou os treze contos do primeiro livro: 40 reais na feira de São Cristóvão (Marcos Michael/VEJA)

Em seu apartamento, no Vidigal, o escritor Geovani Martins falou a VEJA sobre a gênese do livro O Sol na Cabeça, sobre os choques com policiais truculentos e sobre os planos de um futuro romance.

Como nasceu O Sol na Cabeça? Em 2015, participei da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), mas, quando voltei ao Rio, a realidade estava meio estranha. Eu estava desempregado, precisando sair da casa onde morava, e não sabia bem o que fazer. Conversei com minha mãe. Disse a ela: “Não estou querendo procurar outro emprego. Estou querendo escrever um livro”. Por incrível que pareça, ela aceitou bem. Voltei a morar com ela, o que foi esquisito, depois de seis ou sete anos sozinho. Tinha a ideia de escrever um romance, mas não dava pé, tá ligado? O argumento estava mal resolvido.

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Como se decidiu pelo conto? Apareceu um concurso de contos da Biblioteca Parque Estadual. Entrei com uma versão menor de “Primeiro Dia”, que está no livro. Ganhei uma bicicleta. E então o meu computador quebrou. Eu já estava desanimado, e comecei a escrever a mão, devagar, quando minha mãe trouxe uma máquina de escrever Remington, comprada por 40 reais na feira de São Cristóvão. Tinha pouca tinta, mas funcionava. Eu fazia primeiro um rascunho a mão e depois escrevia a máquina — e tinha de ser rápido, senão já não entendia a minha letra. No primeiro dia, comecei a escrever o conto “A Viagem”. Depois, meu irmão, que trabalha na praia, em Ipanema, foi lá em casa, e a gente conversou o dia todo — ele é um grande contador de histórias. Daí surgiu “Rolézim”, que foi uma escola para mim. Aprofundei minha pesquisa sobre linguagem, sobre oralidade, sobre o tom que queria dar ao livro.

Nos contos, toda vez que os personagens têm algum encontro com a polícia é um choque. Não existe policial bom? Se você conhecer um, me apresenta.

Mas policiais têm a mesma origem social dos personagens de seu livro, não? Tenho um amigo da família que foi para a polícia. Era um cara tranquilo. Mas não sei o que acontece lá dentro — não sei se é o poder que sobe à cabeça, ou o fato de estar armado, de saber que tem controle sobre sua vida. Não consigo explicar por que a polícia age assim, mas ela age assim e precisa parar. Fui abordado milhares de vezes, sempre com truculência. Um dia, na rua principal da Rocinha, eu e meu irmão fomos parados de forma grosseira. O policial já veio xingando de antemão. Como a rua estava lotada, consegui argumentar. Falei que eles nunca iam ter o apoio das favelas tratando os favelados do jeito que eles tratam, que assim a gente ia ficar guerreando para sempre. Por incrível que pareça, ele me ouviu e tentou até se justificar: “Cara, a gente corre risco de vida aqui, a gente não sabe com quem está lidando”. Eu estava irritado. Disse que ninguém o obrigou a ser policial, e que, se ele era policial, tinha de trabalhar do jeito que a lei mandava. Foi a maior conversa que eu tive com um polícia.

No seu contrato com a editora Suhrkamp, da Alemanha, já há um “romance” previamente vendido. Sobre o que será esse livro? Falo da entrada da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na Rocinha, em 2012, que foi muito marcante, não só para mim, que morava lá na época, mas para a cidade. Como em “Algo de Sol”, vários personagens vão viver diversas situações, mas o pano de fundo de tudo é a UPP. O livro vai ser dividido em três partes: a expectativa — pois já se sabia que a UPP ia chegar; a entrada, quando ela chega; e a transformação, o que acontece a partir daquilo. A vida de todos os personagens será transformada, mas eles seguem adiante, porque é o que a gente faz: a gente tem de seguir vivendo.

Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572

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