Na trilha da excelência
Pesquisa inédita revela as escolas e os alunos que estão no 1% de notas mais altas do Enem e confirma que, no Brasil, o ensino de qualidade é para poucos
As vésperas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), porta de entrada para a maioria das universidades, cuja primeira etapa acontece neste domingo, 5 (a segunda ocorrerá no dia 12), um levantamento inédito mapeia onde estão e quem são os alunos que costumam figurar no topo — uma turma seleta de estudantes que estão no 1% das notas mais altas da prova. A pesquisa feita pelo IDados, instituto de análises estatísticas que acompanha o sistema de ensino brasileiro, confirma uma incômoda sensação de injustiça: as vagas mais cobiçadas do ensino superior vão para os jovens de maior poder aquisitivo egressos das escolas mais caras da região mais desenvolvida do país. Apesar de iluminar tanta desigualdade, o levantamento permite enxergar no detalhe o caminho da excelência, as boas escolas e a fórmula de sucesso dos estudantes, artigos raríssimos. Dos 13 000 alunos que obtiveram as notas mais elevadas do Enem em 2015, um em cada quatro saiu de um minúsculo grupo de cinquenta escolas — 0,1% de todas as instituições de ensino médio.
Aprofundando o corte dos colégios de alto nível, VEJA apurou os traços em comum das dez escolas que mais emplacaram campeões no disputadíssimo Enem (confira a lista abaixo). Entre eles se destacam o horário integral, aulas mais práticas, preparação para o exame desde o início do ciclo médio e rigorosos processos para o ingresso de novos estudantes, além de mensalidades que podem atingir 5 000 reais. Nessas escolas, o aluno chega às 7 horas e às vezes sai às 18. No Olimpo, de Goiânia, o quinto colocado da lista, as portas ficam abertas até a meia-noite para atletas das maratonas de estudos. Lá, a preparação específica para o Enem envolve a aplicação, em média, de 25 simulados da prova ao longo de cada ano do ensino médio, com sistema de correção idêntico ao oficial, todos valendo pontuação na média final. Uma estratégia do colégio número 1 no ranking, o Bernoulli, de Belo Horizonte, que alçou 75% dos alunos do 3º ano ao 1% nacional, é instituir a produção maciça de redações desde o primeiro ano da vida escolar. “Hoje em dia, nos exames de seleção, vale muito mais saber argumentar e construir um bom texto do que ter profundo conhecimento de gramática”, justifica o diretor, Rommel Fernandes.
Outra tecla em que todos batem ao citar diferenciais de bom ensino é a fidelidade ao colégio, tanto de estudantes quanto de professores. No Vértice, de São Paulo, o quarto colocado no ranking, 91% dos alunos matriculados no 3º ano cursam a instituição pelo menos desde o início do ensino médio, e 80% dos professores batem ponto ali há mais de dez anos. “Isso permite que o aluno e o professor criem vínculos e dá identidade à escola. É bem mais fácil ensinar um estudante de quem se conhecem as limitações e as facilidades”, diz o diretor, Adilson Garcia. Contam a favor também o investimento em ambientes on-line, com simulados, videoaulas e apostilas digitalizadas, e ainda a oferta de matérias eletivas atraentes para os adolescentes, como política e mercado financeiro. Algumas instituições oferecem acompanhamento psicológico e até meditação para amenizar a rotina intensa.
Dadas as condições ideais, os alunos dessas escolas aprendem, preparam-se e escalam o olimpo do Enem — caso dos jovens que ilustram as páginas desta reportagem, responsáveis pelas notas médias mais altas do exame. Essa elite é fera desde os primeiros anos de estudo, não tem uma única recuperação no currículo e vem de famílias em que os pais têm diploma universitário e a renda passa dos dez salários mínimos. Sem outra preocupação que não seja entrar na faculdade, esses alunos seguem uma rotina de estudos que chega a quase doze horas por dia, incluindo o tempo que passam na escola e algumas horinhas extras em casa. Quando o Enem se aproxima, dedicam sábados e domingos a fazer provas antigas. Produzem duas ou três redações por semana. A leitura de livros e jornais é hábito sagrado.
Nos resultados do Enem, as notas mais baixas dessa turma são tiradas em linguagens; as mais altas, em redação e matemática. “A melhor estratégia é se concentrar nas duas matérias em que se consegue pontuar mais. Português, por exemplo, eu só estudei o que o colégio me passou em sala de aula”, confessa Clara Leal, de 20 anos, que fez o ensino médio no Colégio Bernoulli e está matriculada na Universidade Federal de Minas Gerais. Mesmo vindo do topo, os alunos contam que sentiram um baque na transição para o ensino superior — o que é normalíssimo diante do nível de exigência mais avançado e da adaptação aos novos ritos. “O primeiro ano de faculdade foi o que mais estudei na vida. Tomava litros de café para ficar acordado”, lembra Leonardo Veli, ex-aluno do Colégio Olimpo, de Goiânia, atualmente na Universidade Federal de Goiás.
O levantamento do IDados traduz em números o tamanho da concentração dos ótimos colégios e dos ótimos alunos — e ela é espantosa (veja o mapa na pág. 74). Os responsáveis pelo 1% de notas mais altas do exame de 2015 vêm de 439 dos 5 570 municípios brasileiros — menos de 10% do total. Seis em cada dez estudantes são da Região Sudeste. Outra descoberta da pesquisa joga certa dose de água fria na celebração da elite do Enem: a nota mínima média entre os estudantes foi de 701 (a máxima, 889) — e a maior parte do grupo campeão ficou mais perto do mínimo do que do máximo. “Isso revela que uma parcela de nossos melhores alunos é mediana, se comparada aos primeiros do ranking mundial”, explica o Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) Paulo Rocha e Oliveira, diretor do IDados. Tomando como base as estatísticas sobre ensino da OCDE, a organização das nações mais desenvolvidas, o desempenho médio dos brasileiros não daria acesso às boas universidades dos países considerados referência em educação.
Se estudantes das melhores escolas se revelam medianos diante dos alunos de países mais avançados, na combalida rede pública o atraso educacional do Brasil causa estragos retumbantes. Apenas 4% dos 13 000 da elite do Enem cursaram colégio estadual. Mas é entre eles que estão mais de 75% dos inscritos no exame, uma legião de estudantes que chegou ao ensino médio de má qualidade depois de passar pelo fundamental igualmente ruim. “Oito em cada dez estudantes no 9º ano têm notas insatisfatórias”, diz Claudia Costin, fundadora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe), da Fundação Getulio Vargas. “A nota dos melhores ficar abaixo das expectativas nem é o ponto mais preocupante. O mais grave mesmo é o péssimo desempenho dos piores. A distância para equipará-los é imensa”, reforça o especialista em educação Claudio de Moura Castro, articulista de VEJA. Nesse contexto, especialistas também criticam a insistência em dedicar a maior parte das verbas da educação à universidade pública gratuita. “No fim, quem desfruta o benefício são filhos de pais mais ricos que vêm de escola particular. Eles entram nas melhores faculdades, conseguem os melhores empregos e o ciclo vicioso da desigualdade se perpetua e inibe o crescimento”, analisa o economista Maílson da Nóbrega, também articulista de VEJA.
Ao compactar o ensino de uma infinidade de matérias em apenas quatro, cinco horas diárias de aulas tocadas por professores de baixa qualificação e acompanhadas por alunos desmotivados e pouco cobrados, a rede pública faz o contrário de tudo o que levou à excelência os cinco países — todos asiáticos — na dianteira do ranking da OCDE: Singapura, Hong Kong, Coreia do Sul, Japão e Taiwan. “Se chineses ou japoneses viessem a competir pelas vagas nas nossas universidades, não entraria um brasileiro”, aposta João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto. Já as escolas no patamar mais alto do rarefeito ranking das que não apenas passam alunos no Enem como também o fazem com as notas mais altas, estas olham, sim, para fora. Elas aprendem com as nações que já entenderam, e absorveram na sua cultura, que o fator crucial para o avanço de uma pessoa, de um colégio e de um país é poder dispor de um ensino de primeira classe. Simples assim.
Tema: o direito de cada um
Para o aluno que se prepara para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a redação é uma fórmula batida e rebatida: apresentar o tema — sempre uma questão da atualidade —, desenvolver os argumentos e fechar com uma proposta de solução. Cumpridas essas condições, o certo seria escrever o que se quisesse. Só que não, pelo menos para quem fez a prova até o ano passado: o item número 14.9.4 do edital do Enem diz que o texto não pode desrespeitar direitos humanos garantidos pela Constituição, sob a pena de levar zero sumário. No fim de outubro, a determinação, um excesso de zelo do Ministério da Educação, foi suspensa por decisão do Tribunal Regional Federal de Brasília. O entendimento: ao limitar o que pode ser escrito, essa determinação do Enem feria o princípio constitucional da livre manifestação do pensamento.
O pedido de extinção da cláusula veio do movimento Escola sem Partido. “Discordar da lei não significa defender a violação dos direitos humanos, e sim apoiar a liberdade de expressão”, diz Miguel Nagib, diretor do movimento. Na prática, essa é uma não questão. Primeiro porque o aluno ciente de que tem o futuro em jogo não se arriscará a perder pontos com argumentações politicamente incorretas. Depois porque, com ou sem regra, o avaliador é livre para cravar um zero caso julgue absurdo o viés do texto — na correção da redação cabe uma dose de subjetividade. “É uma polêmica desnecessária”, afirma a coordenadora Simone Motta, do Colégio Etapa. Na quinta-feira 2, o MEC informava que ainda não fora notificado da decisão contra o edital que avisa o que pode ou não ser escrito. Anunciou que pode até não anular a prova, mas aplicará um corte na pontuação.
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2017, edição nº 2555