Quando fui banido das pistas sob a acusação de doping, em 2006, mergulhei no fundo do poço. Tinha 24 anos, estava no auge e vi toda a minha carreira escoar pelo ralo depois de uma decisão judicial. Tinha vencido o Mundial um ano antes. Punido com quatro anos fora das competições, fui do topo ao chão, da glória à vergonha. As medalhas e troféus ainda estavam na estante, mas era como se nada daquilo fosse concreto. Os prêmios foram ofuscados por um escândalo que me fez perder patrocinadores, dinheiro, amigos e aquela sensação de que podia tudo. O sentimento que tomava conta de mim era o ódio, ódio de mim mesmo e das pessoas que entendi terem se aproveitado de certa ingenuidade minha. Sempre me perguntaram se era verdade, se tinha me dopado mesmo, e aleguei inocência, como ainda alego. De todo modo, paguei com quatro anos sem competir e com o peso de ter sido um traidor. Isso certamente me fez um atleta diferente.
A decadência me botou em contato com preocupações que passam ao largo da vida real de uma celebridade, e me tirou do trono. Eu era um jovem deslumbrado com o sucesso que não sabia nem como preencher um cheque. De uma hora para outra, eu me vi sem nada e sozinho. Sim, porque nessas horas muita gente desaparece. Dinheiro virou uma questão: eu precisava, por exemplo, calcular se teria o suficiente para encher o tanque do meu carro. Em 2010, voltei às pistas, mas continuei recebendo vaias do público. Na Olimpíada do Rio, inclusive. Retornei ao Brasil recentemente para participar do desafio Mano a Mano. Fui bem tratado, claro. Mas aquela gritaria no ano passado no Estádio Olímpico do Engenhão me entristeceu. A redenção veio mesmo no Mundial de Londres, há dois meses. Era a última corrida de Usain Bolt, e numa cidade onde ele é amado. Sabia que ele seria o herói e eu, o vilão. Os críticos diziam que Gatlin estava fora da disputa. Repetiam: “Temos o jovem Christian Coleman e Usain Bolt, o campeão que nunca foi derrotado. Um deles vai ganhar”.
Eu sabia que tinha a capacidade de vencer. Durante a temporada, desde as eliminatórias até as finais, ia ganhando confiança e rapidez. Eu me sentia no controle, preparado até mesmo para as vaias, que vieram. Vaias têm o poder de derrotar um corredor, mas dessa vez não provocaram nenhum efeito sobre mim. Atingira um estado de concentração máxima, estava tranquilo. Quando cruzei a linha de chegada em primeiro lugar, a felicidade foi tanta que até pensei: dever cumprido, posso me aposentar. Era felicidade com alívio. Durante anos eu havia sido o cara que estava sempre “quase lá”.
No fim, não pude deixar a pista sem reverenciar o grande Usain Bolt. Quando me ajoelhei diante dele, ele me ergueu e me parabenizou. Disse: “Se alguém merece ganhar esse prêmio, além de mim, é você. Você é um cara legal e não merece essas vaias. Você tem classe”. Foi uma emoção sem igual. Não tenho dúvida de que Bolt é o maior corredor de todos os tempos. Ele elevou o atletismo a um nível sem paralelo. Foi muito especial ouvir isso de alguém que tanto admiro. Aliás, entre as pessoas que realmente respeito estão os meus rivais. Um competidor não é nada sem um bom rival que o faça ambicionar cada vez mais. Parar de correr ao lado de Bolt, agora que ele se aposentou, deixa um gosto meio doce, meio amargo. Foi o adversário mais forte que enfrentei em toda a carreira e espero ter sido o mesmo para ele. Sua presença nas pistas é inigualável. Ele domina a cena com carisma, com um ar despojado e relaxado. É quase impossível odiá-lo. Você quer ser ele. É um gigante de bom coração. Estar ombro a ombro com o melhor do mundo foi uma sensação incrível. Quem sabe ainda bato o recorde mundial dos 100 metros rasos, que é dele. Não ganhei no Rio, mas logo vem outra Olimpíada por aí.
Depoimento a Isabela Izidro e Maria Clara Vieira
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552