Foi uma vitória arrasadora, incontestável. Nas eleições mexicanas de 1º de julho, o candidato de esquerda Andres Manuel López Obrador, conhecido pela sigla AMLO, amealhou 53% dos votos. Em um país onde os governadores dos estados têm enorme cacife, o Morena, partido fundado há apenas quatro anos por AMLO, ganhou cinco dos nove postos estaduais que se submeteram às urnas. Na Câmara dos Deputados, o Morena terá 60% das cadeiras. No Senado, 54%. Mesmo com as tradicionalíssimas denúncias de fraude, que incluíram compra de votos e funcionários públicos flagrados com cédulas de votação, além do inacreditável número de 132 assassinatos políticos durante a campanha, não há nada que possa apequenar sua vitória, que quebra a hegemonia de duas décadas do PRI e do PAN, dois partidos tradicionais.
O mandato de López Obrador terá início em 1º de dezembro. É só então que o enigma começará a ser decifrado. AMLO não arredou pé de um discurso de tom nacionalista e prometeu projetos custosos. Ao mesmo tempo, indicou nomes para seu próximo governo que sinalizaram positivamente para os tratados de livre-comércio e para a responsabilidade fiscal. O secretário de Fazenda será Carlos Urzúa, que depois do pleito já saiu falando em reforma da Previdência e em compor um conselho fiscal apartidário. A equipe do atual presidente, Enrique Peña Nieto, que negocia o Nafta, acordo econômico que envolve também os Estados Unidos e o Canadá, será mantida e receberá colaboradores do futuro presidente. “O maior medo é que, com a força inesperada dada pelos eleitores, AMLO entenda que tem capital político para ir além do que imaginava”, diz o economista mexicano Marco Oviedo, do banco Barclays, em Nova York.
Na tentativa de compreender o eleito, prosperaram comparações com o ex-presidente Lula, quando este se elegeu, em 2002, para o primeiro mandato. Há, sim, semelhanças. Os dois fazem uma pregação de esquerda. Lula se elegeu em sua quarta tentativa. AMLO, na terceira. Ambos ganharam a confiança dos eleitores com um discurso contra a corrupção e pela ética — sim, depois do terremoto, talvez muitos não se lembrem, mas Lula era defensor da “política com ética”. As semelhanças entre AMLO e Lula, no entanto, não vão muito além disso.
Analistas preguiçosos chegaram a fazer paralelos risíveis. Por exemplo: o gosto de ambos pela despesa pública excessiva. AMLO pode até revelar-se um perdulário, com suas propostas de combate à pobreza à base de crescentes gastos sociais. Mas não é essa sua história. Nem a de Lula. Quando este assumiu o governo, a dívida pública do Brasil correspondia a 54% do PIB. Quando saiu, era de 38%. Já o antecessor de AMLO, o liberal Peña Nieto, festejado pelo mercado quando foi eleito, assumiu o cargo com a dívida pública em 37% do PIB. E o deixará com 45%.
Há outras diferenças gritantes entre Lula e AMLO que desfavorecem as comparações. Antes de chegar ao Palácio do Planalto, Lula não tinha experiência alguma em cargos executivos. AMLO foi prefeito da Cidade do México, que é complexa como qualquer megalópole de países pobres ou emergentes. Nesse período, já ganhou algumas cicatrizes. Seu secretário particular, René Bejarano, foi flagrado em um vídeo recebendo maços de dinheiro. A lama, contudo, não respingou em AMLO. Não foi o único caso. No ano passado, uma candidata do Morena à prefeitura de Las Choapas, Eva Cadena, foi filmada recebendo notas, que seriam para López Obrador.
No campo político, as diferenças também são gritantes. Lula fundou um partido e nunca pertenceu a outra sigla. AMLO já foi até do PRI, que governou o país por sete décadas seguidas, e do PRD, uma dissidência. Na sua militância sindical, Lula tinha alguma familiaridade com as tensões da relação capital-trabalho. AMLO é um ativista social neófito nessa área.
O mexicano prometeu aumentar o salário mínimo e executar diversos projetos sociais. Agora, terá de ser comedido e convencer seus congressistas a não aprovar orçamentos excessivamente pesados. Fundamental também será preservar a independência do Banco Central do México, cuja responsabilidade é controlar a inflação. “Quando Lula assumiu, em 2003, esse conceito não estava bem sedimentado no Brasil. Ainda hoje isso é discutido”, diz a economista Juliana Inhasz, do Insper, em São Paulo. “No México, a autonomia do Banco Central já é uma realidade desde meados dos anos 1990.”
Publicado em VEJA de 11 de julho de 2018, edição nº 2590