Enquanto eu escrevia este texto, o Ministério da Saúde divulgou uma notícia boa: a prevalência da obesidade no Brasil parece ter se estabilizado de 2015 a 2017. Infelizmente, ela continua alta, mas talvez esse platô prenuncie o início de uma queda. O fato de eu achar essa notícia boa pode, no entanto, ser fonte de polêmica — o que tem ressonância no tema deste artigo. Será que é “gordofobia” querer que a obesidade no país diminua? A gordofobia refere-se a um sentimento de raiva — ou asco ou desprezo — diante de uma pessoa unicamente pelo fato de ela ser obesa. É considerado obeso todo indivíduo com índice de massa corporal (IMC) igual ou acima de 30. Esse sentimento impede qualquer possibilidade de aproximação, contato e empatia entre observador e observado, preenchendo as lacunas referentes ao que a pessoa é (além de obesa) com ideias e certezas negativas preconcebidas, independentes da realidade, que passa a ser secundária.
A gordofobia é, portanto, parente do racismo e da homofobia, para citar só dois exemplos (e, aqui, um lembrete: a gordofobia não tem relação com transtornos fóbicos específicos). Existe há muito tempo (nem sempre com esse nome) e pode aparecer em todas as idades. Não só as pessoas obesas se sentem ofendidas e enojadas com a gordofobia. Ela é mesmo desprezível, agressiva, geradora de bullying e stress em todas as faixas etárias (e, às vezes, transtornos mentais e mesmo suicídios), além de inútil.
Esclareço o último ponto com um exercício de raciocínio, que não é uma sugestão de conduta: se a gordofobia fosse capaz de produzir mudanças saudáveis na vida de um indivíduo, haveria uma tênue linha de defesa a ela — desde que a pessoa obesa autorizasse atitudes gordofóbicas. Seria algo remotamente parecido com fazer uso de um tratamento médico agressivo que, apesar dos bons resultados, causa graves efeitos adversos. Bem, a gordofobia não tem essa utilidade. Nem desse ponto de vista imaginário e utilitário ela é defensável.
Mas há outro neologismo perigoso em voga, a “gordofilia” — em certo sentido, oposto à gordofobia (o sufixo “-filia” exprime a noção de afeição, gosto ou preferência). Digo “perigoso” porque observo que ele vem ganhando contornos de defesa ideológica da manutenção da obesidade. Alguns grupos a equiparam com situações não patológicas como, por exemplo, a orientação sexual, etnia ou religião de um indivíduo. Não há dúvida de que a gordofobia causa sofrimento similar ao provocado por outras discriminações, mas isso não anula o fato de que a obesidade é uma doença.
A gordofobia é abjeta, deve ser repudiada e combatida. Mas achar alguém bacana só por ser obeso é tão obtuso quanto o oposto (avalio você principalmente pelo seu teor de gordura corporal: se ele for alto, você é legal; se for baixo, não. É o mesmo tipo de raciocínio da gordofobia, só que ao contrário!).
Como disse, a gordofilia pode ser igualmente perigosa.
A gordofobia é abjeta, deve ser repudiada e combatida. Mas achar alguém bacana só por ser obeso é tão obtuso quanto o oposto
Repito: a obesidade é considerada doença. Sozinha, ela já se associa à morte precoce, à má qualidade de vida e a uma lista imensa de enfermidades físicas (além de vários transtornos mentais): diabetes, hipercolesterolemia, alguns cânceres, alterações cardiológicas (incluindo hipertensão e infartos), articulares, cerebrais (demência, AVCs) etc. Essas doenças não são consequência de estigma social: se a gordofobia acabasse hoje, elas continuariam lá.
Mesmo assim, todos nós j�� ouvimos que uma pessoa obesa pode ser saudável. Isso é só meia verdade. Qual a chance de alguém ser assim? Estudos apontam estimativas variadas, de 2% a 40%, sendo esta a situação mais frequente em mulheres e em jovens.
Outra questão: esse estado costuma ser passageiro. Para a maioria dos obesos “saudáveis”, a saúde evanesce com o tempo. Com a maturidade, as doenças aqui relacionadas começam a aparecer. É mais ou menos como o uso de tabaco: seus efeitos pioram quanto maiores o tempo de exposição e a dose.
Existem algumas possíveis causas para o surgimento da gordofilia. Vou citar seis.
Confunde-se defender a obesidade com defender o obeso (como na gordofilia), assim como atacar a obesidade com atacar o obeso (como na gordofobia).
O padrão estético há muitas décadas é o da magreza. A maioria das pessoas acha bonito, desejável, saudável e sinal de sucesso ser magro. Isso pode oprimir quem não é.
Há uma sensação de que, por ser obeso, o indivíduo é condenado à pena de máxima exclusão por um júri kafkiano que permeia a sociedade. Essa sensação pode levar a outra: quando inserida num grupo gordofílico, a pessoa pode experimentar uma sensação muito prazerosa de pertencimento, ainda mais se se sentia excluída antes.
Alguns profissionais de saúde ainda culpam o obeso por fracassos terapêuticos (isso, felizmente, tem diminuído). Não vou me estender sobre o assunto, mas já faz tempo que se sabe que isso é uma bobagem.
Os tratamentos para a obesidade cientificamente comprovados têm resultados muito úteis para a saúde, mas modestos em termos de perda de peso (com exceção do cirúrgico, com resultados mais expressivos). Por outro lado, há uma multifacetada oferta de tratamentos “milagrosos”, com roupagem científica ou não, ineficazes ou perigosos, que minam a seriedade com a qual o problema deve ser abordado.
A gordofobia provoca reações justificadamente acaloradas, e a gordofilia talvez seja uma delas. Mas, na área de saúde, reações acaloradas raramente geram condutas adequadas.
Veja, as pessoas têm liberdade de escolher o que farão com sua obesidade — e entre as alternativas disponíveis está até mesmo não tratar dela. O tratamento é apenas o meio para tentar atingir um objetivo desejado ou necessário. Faz quem precisa e quer. Não faz quem não quer (mesmo sendo uma decisão errada).
Querer manter-se obeso é direito individual inalienável. Agora, impor isso como regra moral tácita ou explícita é um erro perigoso. A gordofilia pode tornar uma pessoa mais exposta a problemas que nenhum grupo gordofílico será capaz de solucionar. Repetindo: a obesidade é uma doença com vários níveis de gravidade. Ela causa outras doenças ou está associada a diversas delas. Piora tanto a qualidade quanto a expectativa de vida. E os tratamentos médicos não têm como objetivo principal adequar o paciente à norma estética.
Creio que a divulgação do conhecimento científico é um recurso mais efetivo contra a gordofobia do que posturas inflamadas. Ninguém deve tomar a decisão sobre tratar-se ou não com base na repugnante gordofobia nem estimulado pela gordofilia, às vezes bem-intencionada, mas ainda assim cúmplice da primeira. Em nenhuma situação elas serão boas conselheiras.
* Adriano Segal é diretor de psiquiatria e transtornos alimentares da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) e responsável pela área de psiquiatria do Centro de Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2018, edição nº 2588