A crise de credibilidade enfrentada por diferentes governos pelo mundo afora é resultado do esgotamento do modelo de Estado consolidado nas últimas décadas. O setor público não consegue corresponder plenamente a todas as suas atribuições, premido pelo excesso de gastos e pela necessidade de sustentar o bem-estar de uma população cada vez mais velha. A sobrevivência das democracias requer uma reformulação dos governos, levando em conta as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias — entre elas, a inteligência artificial. É disso que trata A Quarta Revolução — A Corrida Global para Reinventar o Estado, escrito pelo jornalista e historiador inglês Adrian Wooldridge, em parceria com o jornalista John Micklethwait. O livro foi publicado originalmente em 2014, antes, portanto, da vitória de Donald Trump e da decisão britânica de sair da União Europeia. Wooldridge, que é editor da revista The Economist e doutor em filosofia por Oxford, disse que está mais pessimista e que os acontecimentos recentes mostram que a quarta revolução do Estado é necessária para revigorar o apelo e a força da democracia. Ele falou a VEJA por telefone, de Londres.
O que é a quarta revolução? É uma forma de usar o poder da tecnologia e do pensamento político moderno para disciplinar o Estado. Houve anteriormente três revoluções. Thomas Hobbes argumentou que o papel do Estado era proteger as pessoas da morte, da destruição ou da violência. Em meados do século XIX, os liberais diziam que o Estado tinha de garantir a liberdade das pessoas. Beatrice e Sidney Webb, no fim do século XIX, afirmaram que o Estado deveria providenciar o bem-estar das pessoas. Era uma resposta socialista. Houve mais tarde uma reação parcial com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, para os quais o Estado havia ficado grande demais, mas não foi propriamente uma revolução. Chegou a hora de uma quarta revolução. As atribuições do Estado precisam ser avaliadas. Parte da transformação reside no uso da tecnologia para aprimorar a qualidade da prestação de serviços de saúde e educação.
Qual deve ser o papel do Estado no mundo de hoje? Precisamos de um Estado poderoso para fornecer serviços públicos, para evitar que as pessoas matem as outras, para preservar a ordem pública. O problema é que o Estado tende a se autoalimentar. Quanto maior o seu tamanho, mais indisciplinado ele fica. Presta serviços cada vez piores à população, até colapsar sob o próprio peso. É preciso usar a tecnologia moderna para aperfeiçoá-lo. Pode parecer banal dizer isso, mas, se voltarmos ao século XIX, houve um salto de produtividade graças ao uso de máquinas que substituíram trabalhos feitos a mão, com a Revolução Industrial e a Revolução Agrícola. Agora temos as bases de uma nova revolução com as máquinas inteligentes. Os computadores tendem a ser intensivos no uso de informações e de mão de obra. A produtividade na prestação de serviços pode crescer muito.
É possível dar exemplos do impacto da tecnologia nos serviços? A saúde é um serviço muito caro. Mas máquinas, com sua inteligência artificial, poderão fazer esse serviço a distância, com o monitoramento de idosos em casa por meio de câmeras e do controle remoto de procedimentos. Será possível assistir a representações em 3D de palestras em universidades. Professores serão capazes de ensinar através de hologramas. Alunos de medicina começam a usar hologramas e outras tecnologias para aprender técnicas cirúrgicas. É apenas o começo. Em cinco anos, dado o ritmo de avanço de inteligência artificial, todas as áreas vão mudar radicalmente.
Em que países a quarta revolução já se tornou realidade? Singapura é um exemplo poderoso. Era um país que veio do nada nos anos 1950. Um pântano, pobre, parte do império britânico. Tornou-se um dos Estados mais ricos do mundo. Isso por ser aberto para o comércio global, mas também por ter um governo extremamente eficiente. É um governo que vem sendo muito bom em atrair negócios, prover serviços e educar a população. O segundo exemplo são os países da Escandinávia, em particular a Suécia. Por um momento, pareceu que o Estado estava se tornando grande demais e muito ineficiente. Mas, a partir de meados da década de 90, os suecos souberam fazer reformas sérias que cortaram o tamanho do governo e injetaram princípios de mercado, de competição e autonomia. A China é outro exemplo. Era um país muito malgovernado, mas agora tem avançado. Vem fazendo reformas interessantes. O país está preparando as bases de um Estado poderoso. Há um núcleo do Partido Comunista cujas habilidades de gestão são impressionantes.
O seu livro foi lançado originalmente em 2014, mas já antecipava algumas questões que depois ficaram evidentes. O que mudou desde então? O livro foi escrito em um momento de otimismo razoável. Um exemplo de país que ia muito bem em termos de governo e de reformas era o Reino Unido. Mas o Brexit, a saída britânica da União Europeia, tirou o apetite do governo por reformas. No livro, nós falamos que uma de nossas preocupações era que houvesse uma crise da democracia. Era uma referência a uma crise derivada de promessas exageradas, que criam na população expectativas que não podem ser atendidas. Nos anos 2000, a democracia parecia ser a onda do futuro. Todo mundo falava disso. Mas agora vemos que a democracia não está avançando como se esperava. A democracia está paralisada no Oriente Médio e enfrenta grandes desafios na Europa e nos Estados Unidos. A quarta revolução deveria consolidar o apelo e a força da democracia mundialmente, mas estou mais pessimista atualmente.
Por que países que historicamente lideraram o avanço do Estado agora estão enfrentando mais dificuldades? Uma das coisas que chamam atenção nas democracias avançadas é a atuação dos grupos de interesse. Eles estão se tornando muito poderosos. Quanto mais avançado o país, mais poderosos são os grupos, porque são ainda mais profissionais. Veja o caso de Washington. Donald Trump é um presidente terrível. A Inglaterra também está assim. Foi um país pioneiro em reformas, mas está retrocedendo. Os britânicos testemunharam uma melhora dramática no desempenho dos alunos de Londres, que são em boa parte representantes de minorias. Isso tornou a sociedade menos desigual. Mas, infelizmente, por causa do Brexit, muita energia direcionada para reformas desapareceu. Trump e o Brexit estão fazendo muito estrago à ideia da nova revolução do Estado.
As pessoas pedem menos impostos e cobram mais serviços do Estado. Não são reivindicações incompatíveis? O ex-presidente americano John Adams disse que todas as democracias acabam por cometer suicídio, porque as expectativas da população são muitas vezes incompatíveis com o que o Estado pode oferecer. Temos visto que governos estão ficando cada vez maiores e que os déficits fiscais também estão crescendo. Alguns Estados estão gastando recursos de que não dispõem. Outros estão com déficits estruturais. Uma das razões por trás da crise financeira de 2008 foram os gastos públicos desenfreados. Há duas coisas que precisam ser feitas. Uma delas é dispor de organizações tecnocratas que determinem regras em assuntos como as aposentadorias: o valor dos benefícios, a idade mínima, quem tem direito, quase tudo relacionado a esse assunto. Por um lado, o governo não poupa o suficiente; por outro, gasta demais com as aposentadorias. Isso pressiona o déficit cada vez mais. Em última instância, o país irá à bancarrota. A outra medida importante é devolver o poder de fazer escolhas de outra natureza a autoridades locais, como prefeitos e conselhos municipais. Isso terá o efeito de engajar as pessoas e ampliar a sua participação na política.
O senhor acredita que essas mudanças ocorrerão de forma gradual e negociada ou haverá uma ruptura? Na maior parte dos casos, será necessária uma ação mais radical. As mudanças passadas foram introduzidas como resultado de crises, e o maior exemplo é, novamente, a Suécia do início da década de 90. O país estava em crise. Alguns bancos estavam colapsando. A inflação era elevada. Empreendedores abandonavam o país. A Suécia estava ficando sem recursos. Havia uma crise do setor público, e daí ocorreu uma ruptura. De modo geral, países que estão em boa situação não fazem as reformas de maneira tranquila, infelizmente. As pessoas esperam que a tempestade comece para providenciar o conserto.
Países como o Brasil nem chegaram a atingir na plenitude o estágio do Estado de bem-estar social. Eles estão condenados ao atraso? A América Latina pode tirar proveito de tecnologias mais modernas. Os países da região também podem se beneficiar de todos os tipos de reforma que estão acontecendo ao redor do mundo. Antigamente, havia a noção de que as melhores ideias vinham essencialmente da Europa e dos Estados Unidos. Muitas das melhores ideias na área de saúde vêm da Índia, particularmente em termos de design e produção de equipamentos médicos. É uma inovação que se torna realidade por uma fração do custo que teria em países desenvolvidos. Há melhores condições para criar um Estado de bem-estar social hoje em dia do que no passado. Basta refletir sobre o modelo da Grã-Bretanha no início do século XX e que se expandiu fortemente depois da II Guerra. O governo ideal deveria ser dirigido por grandes estruturas burocráticas, parecidas com fábricas. Esse tipo de estrutura não é hoje o mais eficiente em prover serviços à população. Prestar serviços em níveis locais funciona melhor. Essa tarefa hoje é facilitada por celulares e computadores.
O senhor diz que ficou mais pessimista. O que podemos esperar para os próximos anos? A democracia é a melhor entre todas as formas possíveis de governo, ainda que seja capaz de apresentar problemas de toda espécie, como promessas demais, muitas das quais descumpridas. Existe a corrupção. Mas a democracia é muito valiosa e precisamos reformá-la e protegê-la dela própria. Trump representa todos os medos que nós tivemos enquanto escrevíamos o livro, de uma forma maximizada. O populismo que ele incorpora está substituindo seu julgamento individual sobre a Constituição e o governo. É muito ruim que a maior economia do mundo, que é também a mais antiga democracia moderna, esteja nas mãos de um populista. Na Europa, a direita também está em ascensão. Por trás disso tudo está, infelizmente, a estagnação econômica. As pessoas ficam furiosas. Nesse estado, elas se tornam demagogas. E uma razão pela qual os países se encontram estagnados economicamente é que eles estão dispendendo demais com os gastos obrigatórios, sem investir o suficiente na economia produtiva. Tudo isso mostra que é preciso um novo rumo.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552