A Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do mundo, mas o seu povo vive na miséria. Por lá, Hugo Chávez e sua gangue usaram e abusaram da estatal petrolífera, a PDVSA, queimando os dólares ganhos com as exportações para distribuir benefícios insustentáveis. Com o tempo, a dilapidação da empresa minou a própria capacidade produtiva. Entre tantas outras privações, hoje os venezuelanos importam petróleo porque as suas refinarias vivem ociosas. A extração nunca foi tão baixa em duas décadas: está ao redor de 1,5 milhão de barris ao dia, praticamente metade da produção brasileira. Não existe no mundo atual uma história semelhante de penúria em meio à riqueza.
No Brasil, o uso político da Petrobras não foi tão longe, mas a empresa sempre viveu sujeita a manipulações e ao “jeitinho” dos governantes — quando não à rapinagem pura e simples. Com Dilma Rousseff, esteve perto de ir à lona, depois de ser obrigada a vender gasolina abaixo do preço de custo. O prejuízo superou 50 bilhões de dólares, em valores atualizados. Na sequência, vieram as revelações do petrolão. Segundo auditoria interna da companhia, os desvios superaram 6 bilhões de reais. Para os investigadores da Lava-Jato, o desfalque foi de pelo menos 20 bilhões de reais. Mal se livrou do escândalo do petrolão, a estatal está de novo no centro de uma crise que abala o país. A Petrobras e os seus seguidos reajustes no preço dos combustíveis (necessários, em parte, para reverter a sangria financeira do passado) viraram alvo do descontentamento dos brasileiros com relação ao governo. A greve dos caminhoneiros, a despeito do caos que causou, contou com o apoio da maior parte da população. Existe a sensação, entre os eleitores, de que a empresa e o Planalto estão socializando uma conta que deveria ser quitada pelos corruptos.
Bem-sucedida, a revolta pôs contra a parede uma das principais conquistas do governo de Michel Temer, que foi justamente a recuperação financeira da estatal. A crise eclodiu no momento em que a Petrobras havia reassumido o posto de empresa brasileira mais valiosa na bolsa. Sob o comando do respeitado executivo Pedro Parente, ela reverteu prejuízos, cortou dívidas, bateu recordes de produção e vinha sendo recompensada com uma forte alta de suas ações. No entanto, de uma hora para outra, a maré virou novamente. O governo cedeu às pressões e anunciou a redução no preço do diesel, fazendo ruir o discurso de que a empresa teria a autonomia preservada. Em questão de dias, as ações perderam quase um terço de seu valor. Com o país conflagrado, a cabeça de Pedro Parente foi posta a prêmio. A demissão do executivo foi pedida não apenas pelos petistas e pela turma da esquerda barulhenta, mas também por lideranças importantes de partidos da base política de Temer, entre elas o presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), o senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) e a senadora Ana Amélia (PP-RS). Até mesmo Temer deu sinais contraditórios, expondo seu incômodo com a situação.
Em resposta, o executivo colocou o cargo à disposição, deixando claro que não seria cúmplice de uma política que arruinaria o esforço de reequilibrar as finanças da empresa. Argumentou que o preço do petróleo está em alta nos mercados internacionais e, dessa maneira, os combustíveis precisam ser reajustados. É o que vem acontecendo na Europa e nos Estados Unidos (no Brasil ainda existe o impacto adicional da desvalorização cambial). Por fim, na visão de Parente, tem de se levar em conta o peso da tributação. A carga já era alta e, em julho passado, o governo, em meio às dificuldades para aumentar a arrecadação, anunciou uma elevação das alíquotas referentes ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) cobradas sobre a venda de gasolina, diesel e etanol. Diminuir os impostos seria uma caminho para suavizar os reajustes de preços sem afetar a rentabilidade da companhia.
No embate entre a visão liberal de Parente e as demandas dos caminhoneiros, o governo encontrou uma solução (ou melhor, mais um jeitinho) para preservar a autonomia da Petrobras e, ao mesmo tempo, reduzir o valor do diesel. O preço deverá cair ao menos 46 centavos na bomba e, até o fim do governo Temer, não subirá muito mais que isso. A redução será bancada pelo alívio nos impostos e também subsidiada pelo Tesouro (leia-se “contribuinte”).
As medidas do governo terão impacto no caixa do setor público, em uma conta que apenas neste ano deverá alcançar 13,5 bilhões de reais. Trata-se de um desfalque considerável. Cedo ou tarde, essa soma terá de ser paga, seja por meio da elevação de outros tributos, seja pelo aumento da dívida pública. De resto, ficou ainda mais arranhada a imagem de Temer. “Profissionais muito qualificados foram chamados para o governo e contribuíram para que o país saísse da crise e conseguisse um respiro. Pedro Parente é um desses bons técnicos. Ele tirou a Petrobras da lona. Mas agora o governo está desmontando essa estrutura em favor de pleitos de grupos de interesse”, analisa o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper. “Se há críticas quanto à política de preços, então que se abra o mercado à concorrência, assim tiramos o peso das costas da Petrobras. Mas o que estão fazendo agora nos coloca no caminho oposto. Subsidiar os combustíveis elimina qualquer chance de abertura.”
Não existe um ambiente de competição na área de combustíveis do país. Desde a nova Lei do Petróleo, de 1997, a estatal perdeu o monopólio legal da exploração e do refino. Dado o seu tamanho colossal, porém, continua monopolista de fato. Há diversas empresas atuando na exploração e também na revenda de derivados. Mas 80% da gasolina e do diesel comercializados saem da Petrobras. Seu poder é avassalador nesse mercado que é essencial para o funcionamento da economia. Dessa maneira, as suas políticas de preços ficam sujeitas a um zigue-zague contínuo, de acordo com os objetivos do governo da ocasião. Aí está o erro.
Parente assumiu a companhia, em 2016, com carta branca para realizar os ajustes necessários. Inicialmente, os preços foram mantidos relativamente elevados, na comparação internacional, como estratégia para recuperar o caixa da empresa. Desde julho do ano passado, a decisão foi repassar instantaneamente as oscilações internacionais nos preços dos combustíveis. A questão é que o petróleo, nos últimos meses, começou a subir rapidamente. Como reflexo, a alta do diesel e da gasolina na bomba foi de 22% no último ano. Para os caminhoneiros e transportadoras, foi um aumento brutal no custo, difícil de ser repassado. A questão é como aplacar essa situação sem depauperar a companhia, à moda venezuelana. “O transporte de carga no Brasil é complexo. Temos uma quantidade muito grande de caminhões. Mas a Petrobras não pode ser a responsável por corrigir uma distorção que não é dela”, afirma o consultor David Zylbersztajn, ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP). “Ninguém está discutindo o que é mais relevante: uma solução para os modais de transporte de carga. Tudo que se fala é em como mudar a política de preços.”
A discussão de fundo, que com certeza vai ferver nos debates eleitorais, é qual deve ser o futuro da Petrobras. Trata-se de um tema escorregadio. Muitos economistas defendem a privatização e abertura plena à concorrência como maneira de livrar a empresa da ingerência política e cortar a dependência nacional em relação a ela. Mas, como mostrou uma pesquisa do Datafolha na semana passada, 55% dos eleitores rejeitam a privatização e um número ainda maior de pessoas (74%) se opõe à sua venda a grupos estrangeiros. Apenas 30% toleram a privatização e 17% não são contra a sua transferência para controladores internacionais. Entre os pré-candidatos à Presidência, apenas dois defendem abertamente a privatização: João Amoêdo (Novo) e Flávio Rocha (PRB). Questionados por VEJA, cinco se disseram contrários: Geraldo Alckmin (PSDB), Marina Silva (Rede), Alvaro Dias (Podemos), Manuela D’Ávila (PC do B) e Guilherme Boulos (PSOL). Jair Bolsonaro (PSL) limitou-se a declarar que o tema entrou “no seu radar”, mas evitou dizer se essa seria uma possível bandeira de sua campanha; Rodrigo Maia (DEM) desconversou. Henrique Meirelles (MDB) defendeu a ideia de que a Petrobras deve gerar riqueza e ser submetida à competição para melhorar seus índices de produtividade. Ciro Gomes (PDT) não respondeu.
A ladainha do slogan getulista “O petróleo é nosso” parece ter se ossificado na alma nacional. É como se grupos estrangeiros não pudessem beneficiar o país ampliando investimentos, criando empregos e pagando impostos — como, aliás, fazem hoje, mas em escala reduzida, por causa do domínio da Petrobras. Mexer nesse setor sempre causa reações violentas. Quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso enviou ao Congresso projeto de emenda à Constituição para quebrar o monopólio do petróleo, os petroleiros, apoiados pelo PT, reagiram com fúria. Em 1995, a categoria fez uma de suas mais longevas greves. Após a Justiça do Trabalho ter considerado o movimento ilegal, o Exército saiu às ruas para garantir o abastecimento. No governo Lula, com a descoberta do pré-sal, o apelo nacionalista voltou com força. Houve até foto replicando o famoso gesto de Getúlio Vargas, com as mãos lambuzadas pelo óleo viscoso. As jazidas do pré-sal, anunciadas como um “bilhete premiado” e o passaporte para o fim da miséria, acabaram na verdade ensejando um butim que se transformou no maior escândalo de corrupção da história mundial. No embate político, a retórica dos candidatos causa ainda mais confusão, em vez de esclarecer os eleitores sobre os custos e as opções envolvidos em cada decisão. “A população precisa decidir se prefere que o governo dê subsídio para a gasolina e o diesel ou direcione mais recursos para investir em saúde, educação e segurança pública”, diz o consultor Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura.
Superlativa nas mazelas e nos pontos positivos, a Petrobras é um colosso como poucos no mundo. O faturamento anual da companhia supera 300 bilhões de reais. Seus investimentos em desenvolvimento e exploração são da ordem de 50 bilhões de reais a cada ano, ou praticamente 1 bilhão de reais por semana. Passam pela empresa rios de dinheiro, e não é por outro motivo que seu comando é tão disputado no meio político. Privatizada ou não, a única maneira de a companhia se manter competitiva e protegida da ingerência governamental é ampliar a transparência nas decisões estratégicas, blindar seu comando da interferência dos partidos e avançar na abertura do mercado. Com mais competidores atuando na indústria do petróleo, o Brasil deixará de ser refém de seu gigante estatal.
Com reportagem de Marcelo Rocha
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585