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O inferno chegou

O calor extremo que castiga o Hemisfério Norte pode servir para transformar em cinzas os argumentos de quem nega os perigos das mudanças climáticas

Por Leonardo Coutinho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h49 - Publicado em 3 ago 2018, 07h00

Nada como saber de antemão quando uma mudança com potencial catastrófico vai acontecer para poder, se possível, evitá-la ou, ao menos, preparar-se adequadamente. Os cientistas que, desde 1990, alertam para os riscos do aquecimento global causado pela ação humana tentam fazer exatamente isso: convencer governantes de todo o planeta a adotar medidas para enfrentar ou amenizar o fenômeno. O problema das previsões é que os argumentos para agir não são palpáveis para a maioria da população (e dos políticos que dependem do seu voto) enquanto não se tornam realidade. Aproveitando-se disso, os céticos do aquecimento global dizem, jocosamente, que as previsões sobre as mudanças climáticas de longo prazo são tão críveis quanto as que afirmam que vai chover no fim de semana mas faz um sol de rachar. Recorrer a esse sofisma pode ficar mais difícil depois do atual verão no Hemisfério Norte — que vem batendo sucessivos recordes de temperatura em diferentes regiões, muitas vezes com resultados desastrosos.

Na Finlândia, os habitantes de Sodankyla, localizada a menos de 100 quilômetros do Círculo Polar Ártico, experimentaram neste ano um dia de verão com características tropicais: 32 graus, mais que o dobro do esperado. No Japão, 65 pessoas, em sua maioria idosos, não resistiram ao verão mais quente da história do país e morreram. Na Grécia, 91 pessoas perderam a vida em incêndios causados pela combinação de calor intenso, vegetação seca e ventos fortes. Há dezesseis dias, foram registradas temperaturas próximas a 50 graus no sul da Califórnia, nos Estados Unidos, e a temporada de incêndios florestais, própria desta estação, está se provando mais longa que o normal. Os alemães também enfrentaram, neste ano, o mês de abril mais quente da história de seu país. Com os termômetros marcando mais de 40 graus, nem os peixes dos rios Reno e Elba resistiram ao fenômeno — milhares morreram por causa da falta de oxigênio provocada pelo aquecimento da água. Os meteorologistas preveem que a temperatura na Península Ibérica será, neste mês, a mais alta já registrada na Europa continental, batendo o recorde de 48 graus, observado em 1977, em Atenas, na Grécia. Até o que era quente se tornou ainda mais infernal — no início de julho fez 51,3 graus à sombra no Deserto do Saara, a temperatura mais elevada já medida pelos termômetros na África.

Não é possível afirmar que cada um dos eventos acima foi ou é causado diretamente pelo aquecimento global. Há inúmeros fatores regionais que podem tê-los influenciado. O que está claro é que situações climáticas extremas como essas vêm se tornando mais frequentes — e isso não acontece por acaso. A explicação se encontra na emissão dos gases do efeito estufa, que contribuíram para o aumento de mais de 1 grau na média da temperatura na Terra desde o século XIX. Segundo um estudo divulgado na quarta-feira 1º pela Sociedade Americana de Meteorologia, 2017 foi o ano mais quente de que se tem registro sem influência do El Niño, fenômeno natural que começa com o aquecimento das águas do Oceano Pacífico e tem impacto global no clima. E quais foram os anos mais quentes com El Niño? Aqueles imediatamente anteriores: 2016 e 2015. “As temperaturas que estamos experimentando podem não ser ainda o ‘novo normal’, mas podem vir a ser em algumas décadas”, avisou Stephen Belcher, cientista-chefe do serviço nacional de meteorologia britânico.

A janela de oportunidade para combater as causas das alterações climáticas está se fechando. “Muitos cientistas dizem que temos apenas vinte anos para mudar nosso comportamento e partir para um mundo com balanço zero nas emissões de carbono na atmosfera. Isso significa que a cada ano que passa perdemos 4% dessa margem de segurança”, diz o ecólogo Daniel Nepstad, diretor do Earth Innovation Institute, ONG com sede na Califórnia. Se outros efeitos já visíveis do aquecimento global — como a retração do gelo marítimo do Ártico, o aumento do nível dos mares, o encolhimento das geleiras e a morte de corais — não foram ainda suficientes para persuadir políticos e outras personalidades influentes que negam a ação do homem nas mudanças climáticas, quem sabe a atual onda de calor cumpra esse papel. O presidente americano Donald Trump, que tirou seu país de um acordo internacional de redução de emissões, deveria ser o primeiro a cair na real. O problema, como observou o jornal  britânico The Guardian em editorial, é que é mais fácil mudar o clima do que as opiniões de Trump.

Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2018, edição nº 2594

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