O naufrágio da reforma
Governo desiste de mexer nas regras da aposentadoria e, para compensar fracasso, lança um pacote de medidas que até os aliados chamam de 'café frio e velho'
Com o desejo explícito de entrar para a história como “o presidente reformista”, Michel Temer acabou fracassando melancolicamente na mais urgente das reformas econômicas, a da Previdência. Por mais que ele tenha acumulado conquistas nos últimos meses, já sentidas na forma de uma retomada do crescimento, a derrota será dolorosa. O projeto deveria ter entrado na pauta de votação da Câmara na semana passada. No entanto, todas as propostas de emenda constitucional (PECs), como é o caso da reforma previdenciária, estão agora com sua tramitação suspensa por tempo indeterminado. Isso porque a Constituição proíbe a votação de PECs durante períodos de intervenção federal, como a decretada no Rio de Janeiro. Dessa maneira, fechou-se uma última janela de oportunidade para fazer a derradeira tentativa de aprovar a reforma ainda neste ano. A partir de abril, Brasília e todo o meio político estarão dominados por um único assunto: as eleições de outubro. Parlamentar nenhum em busca de voto dará a cara a tapa e emprestará seu nome para aprovar um projeto impopular como o que mexe nas regras da aposentadoria.
O governo desistiu, vencido pela falta de votos necessários no Congresso e também pela dificuldade de explicar à população por que a reforma seria (e ela é) justa e essencial. Temer e equipe abandonaram o projeto do dia para a noite, depois de terem passado meses e meses a fio afirmando que aprová-lo seria uma questão de vida ou morte. O ajuste, na melhor das hipóteses, ficará agora para o próximo presidente. Temer e seu pretenso reformismo acabaram, no fundo, sucumbindo à resistência dos grupos organizados de interesse e à incapacidade de convencer o eleitorado de que a reforma seria benéfica para a maioria das pessoas. “Existe na sociedade brasileira um conjunto de privilégios para alguns, como o auxílio-moradia dos juízes. A previdência dos funcionários públicos é outro deles”, afirma o economista Fernando de Holanda Barbosa, professor da Fundação Getulio Vargas. “A dificuldade de mudar isso, quando esses interesses estão em jogo, é muito grande.”
No esforço de minimizar a derrota e amenizar seu simbolismo negativo, o governo fez o que todo governo faz: sacou da cartola uma agenda de “medidas positivas”, recolhendo uma medida aqui, outra ali, e colocando tudo dentro de um pacote com cara nova mas conteúdo velho. Na segunda-feira, apinharam-se em uma mesa sete autoridades, entre ministros e lideranças do Congresso, para uma entrevista coletiva. Foram apresentadas quinze medidas tidas, agora, como “prioritárias” (veja o quadro). Temer esteve lá e discursou enfatizando a importância delas para aumentar a produtividade da economia. Mas o desalento dos presentes foi evidente. Não era para menos. A grande maioria dos tópicos já faz parte de projetos que tramitam há tempos no Congresso. Diante da fragilidade política do governo, é provável que muitos deles continuem engavetados. A privatização da Eletrobras, por exemplo, enfrenta uma oposição renhida de estimados 400 parlamentares — e, sem o aval deles, o projeto não anda. O clima de animosidade ficou claro na reação dos presidentes do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ambos, diga-se, da base governista. Maia, sabendo que o pacote era antigo e estava apenas com uma embalagem nova, não deixou por menos. Disse que as medidas eram iguais a “café frio e velho” e afirmou que o Congresso vai votar o que julgar importante. Eunício Oliveira foi na mesma linha: “Que pauta prioritária que eu não sei? A pauta do Congresso quem faz somos nós do Congresso, não é o governo que faz pauta aqui”.
Enquanto as disputas políticas contaminam as reformas, paira no ar a dúvida a respeito de como o país conseguirá equilibrar as finanças. Cálculos do banco Itaú mostram que, sem reformas que diminuam as despesas, a regra do teto para os gastos, aprovada em 2016, dificilmente será cumprida em 2019. Mesmo considerando um cenário em que os gastos não obrigatórios fiquem estáveis, há um estouro do teto legal estimado em 29 bilhões de reais. As despesas com folha de pagamento e com aposentadorias, ambas obrigatórias, consomem 70% do orçamento e continuam crescendo acima da inflação. Trata-se de uma bomba-relógio. “Em um cenário de sete ou oito anos, todo o orçamento será consumido por essas duas rubricas. Não haverá espaço para gastos com saúde, educação e outras áreas essenciais”, afirma Paulo Levy, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Postergar a reforma da Previdência também significa que o ajuste futuro será ainda mais amargo. Para manter a economia total prevista na reforma, na casa dos 500 bilhões de reais em uma década, o governo terá de impor regras mais duras, como um período de transição de idade mínima mais curto. “Não precisamos olhar para o caso da Grécia para saber o que acontece com um governo que não controla seus gastos públicos. Basta ver o que se passa no Rio de Janeiro”, diz Mario Mesquita, economista-chefe do Itaú.
No livro Ascensão e Queda das Nações, de 1982, o economista americano Mancur Olson descrevia uma situação na qual os países entrariam em crise porque acabariam dominados por grupos cada vez mais fortes e organizados, voltados para a defesa dos próprios interesses, em detrimento dos grupos desarticulados. Quando a economia cresce rapidamente, gera oportunidades para todos. Mas, quando está estagnada, os conflitos distributivos afloram. Olson refletia, principalmente, sobre a decadência relativa enfrentada pela Inglaterra após a II Guerra Mundial em comparação à Alemanha Ocidental e até mesmo à França. O Brasil nunca foi uma potência mundial como o Império Britânico, todavia parece padecer do mal descrito por Olson. Os ingleses souberam reencontrar o caminho da prosperidade. Talvez o Brasil o encontre algum dia — mas, na última semana, ficou um pouco mais distante desse objetivo.
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571