O poderoso Gilmar
Influente, controverso e impopular, o ministro do STF é considerado o principal obstáculo no Judiciário ao avanço da Operação Lava-Jato
O ministro Gilmar Ferreira Mendes, de 61 anos, costuma dizer que não pode se preocupar com o que falam ou pensam dele antes de tomar uma decisão judicial. Só assim, afirma, terá condições de agir com independência e julgar de acordo com suas convicções. Pois, seguindo essas convicções, Gilmar Mendes está se tornando o maior obstáculo às investigações da Operação Lava-Jato e, com isso, vem despertando protestos por onde passa. Em uma semana, ele mandou soltar nove presos da Lava-Jato no Rio de Janeiro e tomou uma decisão contra a prisão em segunda instância, uma novidade jurídica que, aprovada no ano passado, deu um tremendo impulso às investigações. Com isso, ao participar de um evento em São Paulo, escapou por pouco de levar uma chuva de tomates de um manifestante. Foi alvo de mais um pedido de suspeição da Procuradoria-Geral da República e, nas redes sociais, tornou-se a estrela de um movimento, o #ForaGilmar, lançado por artistas. O site Change.org coletou, até o fechamento desta edição, mais de 800 000 assinaturas de um total de 1 milhão que pretende recolher para apresentar um pedido de impeachment do ministro.
Gilmar Mendes está convencido de que a Lava-Jato tem cometido arbitrariedades e de que a Justiça precisa pôr freio nesse movimento, sob pena de instalar um Estado autoritário no país. Ao soltar os presos, o ministro travou uma queda de braço com o juiz Marcelo Bretas, conhecido como “Sergio Moro do Rio”. Na quinta-feira 17, Mendes concedeu um habeas-corpus ao empresário Jacob Barata Filho, barão do setor de transporte no Rio, acusado de pagar propina a agentes públicos em troca de vantagens. Em resposta, o juiz Bretas, que mandara prender o empresário, emitiu nova ordem de prisão no mesmo dia, só que com base em uma alegação diversa. Gilmar Mendes revidou: soltou Barata Filho mais uma vez.
O caso produziu uma ampla polêmica por três razões. Gilmar Mendes foi padrinho de casamento de uma filha de Barata Filho, que, além disso, é sócio de um cunhado do ministro em uma empresa de ônibus. Mais: a mulher de Gilmar Mendes, Guiomar Feitosa, trabalha no escritório de advocacia que defende Barata Filho. Por esses motivos, havia certa expectativa de que Gilmar Mendes se declarasse impedido para julgar o caso. Em vez disso, ele deu o habeas-corpus que o investigado queria. Sobre a questão do impedimento pessoal, a lei diz que o juiz deve se afastar de casos quando é “amigo íntimo” da parte. Gilmar Mendes interpretou que a qualificação não contempla padrinhos de casamento. Outros juízes fazem a interpretação oposta. Na semana passada, em entrevista ao programa de Pedro Bial, na Rede Globo, o jornalista perguntou ao ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, se ele achava que Gilmar Mendes havia cometido um erro. Elegantemente, respondeu que não comentava casos que envolviam colegas, nem os criticava publicamente, mas não se esquivou do ponto fulcral. Afirmou que, se fosse posto diante de uma causa que envolvesse o pai de um afilhado de casamento, ele se declararia impedido. Gilmar Mendes não o fez, mandou soltar o réu e provocou: “Vocês acham que ser padrinho de casamento impede alguém de julgar um caso? Vocês acham que isso é relação íntima como a lei diz?”.
Além de liberar presos da Lava-Jato — e a polêmica anterior nessa área aconteceu quando libertou Eike Batista, o ex-bilionário que estava preso por pagamento de propina —, Gilmar Mendes tem se insurgido contra outros pilares da operação. Considera que ela faz uso abusivo das prisões preventivas, que julga “alongadas demais”. Acha que estas podem estar sendo usadas, nas suas palavras, como “instrumento de tortura” para forçar delações. Também não se sente confortável com os termos em que vêm sendo seladas as delações premiadas, que, para ele, prometem muito e entregam pouco, além de ferir preceitos legais. Se depender de Gilmar Mendes, a delação do empresário Joesley Batista, que caiu como uma bomba sobre o governo do presidente Michel Temer, será cancelada.
O ministro age segundo suas convicções. Não está fazendo nada de ilegal ou irregular, apenas dando sua interpretação pessoal às leis e aos códigos, o que é uma prerrogativa soberana do juiz. A questão de fundo é que a interpretação de Gilmar Mendes tende a consolidar seu prestígio entre os poderosos acusados na Lava-Jato e tende a chocar-se com a aspiração nacional de mudar o paradigma brasileiro de tolerância com a corrupção e com os crimes de colarinho-branco. Um exemplo claro ocorreu na semana passada. Em Brasília, o ministro resolveu soltar um réu que só estava preso por ter sido já condenado em segunda instância — no caso, pelo crime de omissão de informações às autoridades fazendárias. Em Curitiba, o juiz Sergio Moro mandou prender dois réus exatamente porque já estavam condenados em segunda instância. São dois juízes interpretando a mesma lei de modos opostos. Nenhum cometeu ilegalidade. Ambos estão decidindo segundo suas convicções.
A prisão em segunda instância, aliás, será o próximo embate para o qual Gilmar Mendes está se preparando. Em outubro de 2016, o Supremo entendeu que um réu sentenciado em segunda instância já podia começar a cumprir a pena, deixando de ser necessário que se esgotasse toda a sucessão de recursos que, antigamente, costumava chegar até o STF, retardando indefinidamente a prisão de condenados. A decisão virou uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de muitos acusados, e boa parte deles, sentindo a ameaça da lâmina, resolveu selar acordos de delação e contar tudo o que sabia. Em conversas reservadas, o ministro Edson Fachin, relator dos casos da Lava-Jato no STF, já revelou seu receio de o plenário do tribunal voltar atrás na decisão de autorizar a execução da pena após sentença de segunda instância. Gilmar Mendes, que outrora defendia a antecipação da pena, está em campanha aberta para que a prisão só seja cumprida após o julgamento dos recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que funciona como uma espécie de terceira instância. Os condenados ganhariam tempo, e a medida teria efeito suprapartidário. Lula, outro desafeto de Gilmar Mendes, seria o grande beneficiário da mudança.
Entre os ministros do Supremo, o contraponto mais claro a Gilmar Mendes é Luis Roberto Barroso. Articulado e dono de uma clareza ímpar em seus votos, Barroso afirma sem rodeios que o país vive uma “operação-abafa” contra a Lava-Jato. Sem citar nomes, tem declarado que os adversários da operação estão “nos altos escalões”, por uma razão muito simples: historicamente, jamais sofreram o alcance da lei, e continuam a defender seu espaço de impunidade. O debate sobre o direito de o STF anular delações premiadas seladas pelos procuradores, por exemplo, já colocou Mendes e Barroso em lados opostos. Na ocasião, Barroso disse que estava antevendo que o movimento pretendia, lá na frente, derrubar uma série de condenações já feitas no âmbito da Lava-Jato com base em delações.
Com seu perfil combativo, Gilmar Mendes é o alvo predileto dos pedidos de impeachment e suspeição. Na semana passada, depois das decisões envolvendo Barata Filho, ele recebeu mais dois pedidos de impedimento, movidos pelo seu arqui-inimigo Rodrigo Janot, o procurador-geral da República, a quem Gilmar Mendes classifica como “o mais desqualificado” comandante da PGR da história. É o terceiro pedido de impedimento do ministro que Janot apresenta só neste ano. Desde sua posse no Supremo, em 2002, Gilmar Mendes já foi alvo de oito, um recorde no STF. Essas iniciativas têm efeito processual nulo, mas servem como instrumento de pressão contra o ministro.
A animosidade com Gilmar Mendes não decorre apenas de sua atuação no campo jurídico, mas adentra sua atuação política. O ministro foi decisivo na derrocada de Dilma Rousseff, o que lhe valeu a ira eterna dos petistas e afins, mas também aplausos generalizados de um país que clamava “Fora, Dilma”. Também coube a Gilmar Mendes impedir a posse de Lula como ministro da Casa Civil de Dilma, um lance que matou o governo. Cumprida essa etapa, o ministro tornou-se um conselheiro do presidente Michel Temer, com quem mantém frequentes encontros fora da agenda sem que ninguém saiba exatamente o que discutem — e aí começou também a colher críticas. No julgamento da chapa Dilma-Temer, cujo processo reuniu provas acachapantes de uso de dinheiro ilegal, o ministro era francamente favorável a inocentar os acusados. Chegou a dizer que insistiu na realização da investigação apenas para que o país conhecesse a bandalheira da chapa, mas que nunca teve intenção de puni-la com a cassação.
Na semana passada, o ministro e o presidente até fizeram um dueto político, defendendo simultaneamente a adoção no país de um certo sistema “semipresidencialista”. Especialista em direito constitucional, Mendes sempre mostrou desembaraço na área política. Quando foi indicado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso ao Supremo, senadores lhe perguntaram, durante uma sabatina, se ele atuaria como “líder do governo no Supremo”. A expressão é atualíssima. Mendes ainda esteve ao lado de Temer na operação destinada a garantir o arquivamento da denúncia contra o presidente apresentada por Rodrigo Janot. Essa atuação desenvolta nas articulações de bastidores reforçou outro de seus epítetos, o de “Golbery de toga”, em referência ao general Golbery do Couto e Silva, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e eminência parda da ditadura militar. Para os políticos, Mendes tem se mostrado o mais eficiente anteparo ao avanço da Lava-Jato, peça-chave daquilo que o senador Romero Jucá, um dia, chamou de grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo, destinado a estancar a sangria. A VEJA, o ministro garantiu que não trabalha contra a operação, mas apenas para que ela cumpra rigorosamente o que manda a Constituição. Tudo isso, acrescenta, em nome da coletividade.
Embates na Lava-Jato
Os diversos casos de delação são suficientes para demonstrar o abuso nas promessas ao delator e o pouco-caso com direitos do delatado
Gilmar Mendes, sobre as delações premiadas
Podemos estar usando a prisão preventiva como instrumento de tortura
Gilmar Mendes, sobre as prisões preventivas
Nós admitimos que se permitiria a prisão a partir da decisão de segundo grau. Mas não dissemos que ela fosse obrigatória
Gilmar Mendes, sobre cadeia em segunda instância
A outorga de poderes sem controle ao Ministério Público faz com que boas intenções degringolem em uma rede de abusos e violações de direitos fundamentais
Gilmar Mendes, sobre a disputa com o procurador-geral
“A vítima será você. Será seu filho”
Na semana passada, Gilmar Mendes, apesar da avalanche de críticas, continuava impassível. Ameaça à Lava-Jato? Bobagem, diz ele, ressaltando que sua missão, e a do Supremo, é fazer com que a investigação não fuja da baliza constitucional.
Por que o senhor mandou soltar mais uma leva de corruptores? Tenho repetido muito uma frase de Rui Barbosa: “O bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde”. Houve uma massiva propaganda no sentido de dizer que só se faz Justiça com prisão. Agora a prisão preventiva ganhou outra conotação, e o objetivo é proceder e induzir a delação. Se é assim, estamos usando a prisão preventiva como um instrumento de constrangimento e talvez até de tortura.
Dizem que o senhor é uma ameaça à Lava-Jato. Isso é uma bobagem. A Lava-Jato será bem-sucedida enquanto ela se mantiver nos trilhos do estado de direito. Se ela descambar, será fatalmente atingida. Sempre elogiei a Lava-Jato.
O STF pode rever acordos de delação já fechados? Se há uma coisa de que não tenho dúvidas é que o acordo de Joesley Batista (dono do grupo JBS) vai ser revisto, porque certamente não correspondeu à legalidade. Se o tribunal entender que ele é chefe de quadrilha, vai cair a delação. Se cometer novos crimes, cairá a delação.
A soltura de presos preventivos e a anulação de delações não comprometem a Lava-Jato? Há delações que não possuem base fática e estão sendo desmontadas. Isso tem a ver com más práticas do Ministério Público.
Como avalia os pedidos de impedimento apresentados contra o senhor? Você sabe o que penso do Janot. Vi Jacob Barata uma vez. Eles presumem uma desonestidade de antemão, e isso é uma bobagem. Se eu tivesse vulnerabilidades, eu teria essa capacidade de enfrentamento e a independência que tenho?
O senhor está propondo rever a prisão após a condenação em segunda instância. Isso agrada a muita gente poderosa que se encontra presa. Sou um mau profeta, porque as coisas que eu falo acontecem. A prisão em segunda instância se transformou em uma prisão preventiva continuada. É razoável que, olhando o contexto, a gente continue com isso? Não. Isso não faz sentido.
O senhor é criticado por se reunir com políticos, pessoas que eventualmente terá de julgar. Você já me viu preocupado ou depressivo? Só fico chateado quando me imputam coisas que não fiz. Na verdade, tenho certeza de que estou defendendo as próprias pessoas. Se a gente deixar que um estado autoritário se instale, a vítima obviamente não serei eu. Será seu filho. Será você. Essa é a minha convicção. Não estamos disputando concurso de miss simpatia.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2017, edição nº 2545