O que eles têm em comum com Trump
Atuais favoritos na corrida para o Planalto, Lula e Bolsonaro compartilham com o presidente americano a aversão à leitura
“Nem todos os leitores são líderes, mas todos os líderes são leitores.” A frase do 33º presidente americano, Harry Truman, virou recordista em citações assim que se tornou pública. Encontrada em um manuscrito na gaveta do escritório do presidente após sua morte, em 1972, ela fez sucesso por gerações sem nunca ter tido seu teor questionado. Até que surgiu Donald Trump — ou melhor, o livro sobre Donald Trump. Em Fogo e Fúria, Michael Wolff revela, entre outras coisas, que o atual presidente do país que ostenta 265 prêmios Nobel não tem simpatia por livros nem por coisa alguma que contenha muitas letras. No exemplo mais contundente dessa aversão, o jornalista reproduz um e-mail que teria sido escrito em abril de 2017 por um importante nome da Casa Branca e que, segundo Wolff, refletiria a opinião particular de Gary Cohn, o principal assessor econômico do governo. “É pior do que você pode imaginar. Um idiota cercado de palhaços. Trump não lê nada. Nem sequer um memorando de uma página, nem relatórios breves, nada. (…) Estou em constante estado de choque e horror”, diz a mensagem.
No Brasil, o fato de Trump ter jogado por terra o axioma de Truman não deve soar tão chocante assim. Como o presidente americano, os dois primeiros colocados nas pesquisas para as eleições de 2018 já afirmaram ser péssimos leitores. O deputado federal Jair Bolsonaro, em segundo lugar no páreo, não se constrange em dizer que não está lendo livro algum no momento. “Há três ou quatro anos eu não tenho tempo de falar em livro”, disse a VEJA. Nas horas vagas, prefere teclar no smartphone. “Eu fico no WhatsApp.” Questionado sobre sua obra favorita, riu, constrangido: “Aí é complicado”. Aos poucos, foi se lembrando dos títulos que diz ter apreciado. Indicou como seu preferido A Verdade Sufocada, de Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi e o primeiro torturador condenado civilmente pela Justiça brasileira. “Li o livro do Médici. Me fugiu o nome agora. (Mais tarde, o candidato informou à reportagem tratar-se do livro Médici: a Verdadeira História, de Agnaldo del Nero Augusto.) E também o de um ex-coronel cubano que chegou a ser o zero um do Fidel Castro. Um de capinha azul.” O deputado se referia a A Vida Secreta de Fidel, escrito por Juan Reinaldo Sánchez, ex-guarda-costas do ditador morto.
Como o capitão da reserva, o ex-presidente Lula há muito não esconde seu desinteresse pela leitura. Em 1979, em entrevista à revista Playboy, afirmou que, “quando muito”, lia o prefácio de livros. Dois anos depois, falando para a TV Bandeirantes, reafirmou: “Até para ler eu sou preguiçoso. Eu não gosto de ler, eu tenho preguiça de ler”. Em 2009, já no mais alto posto do país, em entrevista à Rádio Tupi, Lula disse que estava lendo o romance Leite Derramado, de Chico Buarque, e acrescentou: “Passo um pouco da noite lendo, eu não consigo ler muitas páginas por dia, dá sono. E vejo televisão. Quanto mais bobagem, melhor para mim. Eu quero é limpar a cabeça”. Amigos e aliados mais próximos garantem que as longas internações no Hospital Sírio-Libanês para tratar de um câncer em 2012 teriam transformado o petista em “leitor voraz”. Lula não respondeu ao questionamento de VEJA sobre os livros que tem lido (veja as respostas de outros seis presidenciáveis nesta página e na seguinte).
Dos mandatários brasileiros mais afeitos às letras, especialistas destacam Getúlio Vargas e, mais recentemente, Fernando Henrique Cardoso. O primeiro produziu milhares de páginas de um diário durante seus dois governos (1930-1945 e 1951-1954) e o segundo, além de gravar diários minuciosos ao longo de oito anos no comando do país, foi um dos poucos líderes brasileiros a conseguir transferir a erudição das letras para o mundo prático da política, na avaliação do historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em compensação, o marechal Arthur da Costa e Silva, que governou o Brasil de 1967 a 1969, bem poderia se identificar com Trump. O general se jactava de nunca mais ter lido um livro desde que deixara a escola militar. Certa vez, conta o historiador e escritor Boris Fausto, viajava com o general Golbery do Couto e Silva enquanto este lia um livro sobre o Vietnã. “Mas você lê essas coisas?”, perguntou o marechal. “Leio, porque a questão do Vietnã nos interessa de perto. Caso os Estados Unidos percam essa guerra, a Ásia se tornará comunista, e isso nos afetará de algum modo”, explicou Golbery. Costa e Silva respondeu ao general com uma frase que poderia ter sido pronunciada pelo presidente americano: “Você é um idiota. Fica perdendo tempo com essas coisas. Eu só faço palavras cruzadas”.
A despeito do que possam pensar ex-presidentes brasileiros e candidatos ao posto, a ciência já constatou que o hábito de ler produz indivíduos mais inteligentes. Esse fato foi trazido à luz em pesquisa da Universidade de Toronto conduzida pelo professor Keith Stanovich, publicada em 1993 e ainda não superada. Ela analisou os efeitos da leitura no desenvolvimento da inteligência verbal dos indivíduos e concluiu que ler aumenta a capacidade de decodificação do cérebro, melhora as habilidades linguísticas e expõe leitores a conceitos que ajudam a construir a base de seu conhecimento, ampliando sua capacidade de resolver problemas — premissas valiosas para um bom líder. “A leitura não apenas aprimora a erudição. Resulta também na melhora da capacidade de compreensão”, afirma a linguista Eni Orlandi, que leciona na Unicamp. “E de um governante espera-se que tenha capacidade de compreender sua época.”
A revelação de que Trump não vai além de artigos sobre si mesmo e uma coluna de fofocas do New York Post causou mais consternação aos americanos pelo fato de eles estarem acostumados a presidentes que, se não leem de verdade, ao menos se esforçam para parecer que o fazem — a imagem do líder caminhando em direção ao avião com um livro sob o braço já é um clássico da iconografia dos Estados Unidos.
Franklin Roosevelt era grande admirador de William Shakespeare. Na II Guerra, por ocasião de um ataque bem-sucedido contra a Alemanha, ele e o premiê britânico Winston Churchill (que também escrevia e chegou a ser laureado com o Nobel de Literatura) celebraram a vitória recitando um para o outro frases de Rei Lear. O episódio é relatado pelo americano Jon Meacham nos livros American Lion, ganhador do Pulitzer, e Franklin and Winston: A Portrait of a Friendship, que traçam paralelos entre as preferências literárias dos presidentes e o impacto delas em seus governos. Meacham lembra ainda que Thomas Jefferson era obcecado pelos escritores escoceses do Iluminismo e Abraham Lincoln era outro admirador de Shakespeare. Isso criou, segundo ele, uma tradição literária e cultural anglo-americana na Casa Branca que ajudou no azeitamento das relações diplomáticas entre os dois países no decorrer dos séculos.
Um exemplo desse impacto ocorreu durante a Guerra Civil, quando diplomatas americanos se irritaram com a posição de neutralidade anunciada pela monarquia britânica por entender que ela poderia sinalizar um reconhecimento dos estados escravocratas do Sul como nação. Lincoln, conhecedor da cultura abolicionista dos ingleses, em especial os da classe trabalhadora, convocou seus embaixadores e pôs panos quentes na situação, evitando a eclosão de um conflito com a Inglaterra. A primeira metade da frase de Truman continua valendo: nem todos os leitores são líderes. Mas o americano se decepcionaria ao constatar que a segunda parte mudou: nem todos os líderes hoje são leitores. E tudo indica que o mundo só tem a perder com isso.
Com reportagem de Marcela Mattos e Robson Bonin
Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2018, edição nº 2565