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O raio-x da insensatez

Baleado ainda dentro do útero de sua mãe, o bebê Arthur vira um símbolo inusitado do nível insuportável a que chegou a violência no Rio de Janeiro

Por Luisa Bustamante, Maria Clara Vieira, Thiago Prado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 19h40 - Publicado em 8 jul 2017, 06h00

Em seu excelente romance Enclausurado, o escritor inglês Ian McEwan conta a história de um feto hamletiano que perde a inocência antes mesmo de nascer. Parecia apenas um ousado voo ficcional até as 17h30 da sexta-feira 30, quando uma bala rasgou o lado esquerdo da barriga de Claudineia dos Santos Melo, perfurou sua bacia e penetrou no tórax do feto que carregava no útero havia 39 semanas. Fez-se ali a vítima mais jovem da violência desbragada no Rio de Janeiro, alguém que, tal como na ficção, perdeu a inocência antes mesmo de nascer. Ferida com a 624ª bala perdida do ano, Claudineia foi levada às pressas para o hospital e, numa cesariana de emergência, deu à luz seu primeiro filhinho. Chamou-o de Arthur.

Arthur, sua mãe e seu pai, Klebson da Silva, tiraram o fim da tarde ensolarada para comprar o último item do enxoval, o carrinho do bebê. Saindo da loja, o paraibano Klebson, 27 anos, conferente de estoque em um frigorífico, voltou com a compra para casa na favela do Lixão, uma das áreas conflagradas de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Claudineia, 29 anos, que também nasceu na Paraíba e trabalha em um supermercado, resolveu parar na farmácia para comprar repelente — preocupava-se com o vírus da zika. De repente, sons de tiros: na saída da favela, policiais encerravam uma operação quando foram atacados, e começou a chuva de balas. Não deu tempo de correr. Meia hora depois, às 18h02, Claudineia dava entrada no Hospital Moacyr do Carmo sem saber que o filho também tinha sido baleado. Arthur nasceu às 18h27.

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“VAI VENCER” – Klebson mostra os exames de Arthur: um filho muito esperado (Márcio Alves/Agência O Globo)

A pediatra Claudia Trannin contou a VEJA que, ao nascer, Arthur chorou fraquinho. Foi radiografado, entubado e recebeu anestesia local para a drenagem do tórax. “Quando o dreno foi inserido, o bebê retraiu os bracinhos e as pernas e fez cara de choro”, diz ela. Mais exames constataram a extensão dos ferimentos. A bala que furou a barriga de Claudineia entrou no lado esquerdo do peito de Arthur e, seguindo uma trajetória ascendente, quebrou costelas em três pontos, perfurou os pulmões, lesionou duas vértebras, fraturou a clavícula e o ombro direitos, esmigalhou cartilagem na orelha e pegou de raspão a cabeça. O cirurgião Luiz Müller estava de saída quando soube do caso e se uniu à equipe médica: “Nunca tinha visto uma coisa dessas”. Mesmo ferido, segundo o médico, o bebê reagia a estímulos, esforçava-se para respirar e tinha boa frequência cardíaca. A tensão da equipe diminuiu quando o tórax foi drenado. “Saiu mais ar do que sangue. Isso indicava que o sistema vascular não tinha sido atingido.” A cirurgia que salvou a vida de Arthur durou duas horas. O menino agora terá de sobreviver às mazelas do Rio e do Brasil.

A história cruel de um bebê ainda sem história caiu com a força de uma marretada na dilacerante estatística fluminense de mais de 600 vítimas neste ano de balas perdidas — aliás, nem tão perdidas assim, observa o colunista Roberto Pompeu de Toledo em artigo endereçado a Arthur (leia na pág. 98). Nos bairros, a vida em geral segue normal, ainda que a sensação de insegurança tenha se intensificado. No entanto, a extrema violência que impera nas favelas — e transborda para outras áreas — está vergando a Cidade Maravilhosa, a cidade olímpica. Nos últimos dias, o triste rol de vítimas incluiu uma mãe e filha e uma garota de 11 anos que estendia a roupa no varal dentro de casa. Houve manifestações indignadas de protesto contra a violência e apelos à paz.

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(Arte/VEJA)

Arthur está internado no Hospital Adão Pereira Nunes, mais adequado para tratamento neonatal. Já respira normalmente e, ao contrário dos primeiros dias, já não corre risco de vida. As lesões na coluna paralisaram seus movimentos, aventou-se a possibili­dade de que ficasse paraplégico, mas o quadro não é irreversível. “Bebês têm excepcional capacidade de regeneração”, diz Müller. O pai pôde vê-lo no sábado, um dia depois da tragédia, e saiu aliviado. “Está vivo”, desabafou. A VEJA, disse que Arthur é gordinho e cabeludo. É parecido com a mãe. “Ele foi muito esperado. Tenho certeza de que vai vencer.” Claudineia não teve ferimentos graves; sofreu mais com o desespero de não poder ver a carinha do filho. “Quero uma foto”, pedia. Recebeu alta na quinta-feira, sem saber que Arthur não se movimenta. Klebson não teve coragem de contar e encarregou o primo Walter Melo da dura tarefa. “Falei: o bebê já respira sem aparelho, mas estão falando que não vai poder andar. Não é nada certo”, disse Walter à prima, que respirou fundo e falou: “Não era para ser assim”. Depois, foi visitar Arthur.

A violência no Rio já foi desenfreada, melhorou com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e está degringolando de novo. Há exatamente um ano, uma reportagem de VEJA acompanhou as ocorrências policiais na capital e arredores durante 48 horas. Registrou 27 mortos, vinte feridos, dezenove tiroteios e sete arrastões. Foi um fim de semana convencional. Pois o cenário, de lá para cá, ficou mais desolador, e os crimes disparam (veja o quadro na pág. ao lado). O mês de maio bateu recorde em roubos no estado: 23 200 casos, um a cada dois minutos. No ano passado, houve 6 262 homicídios, um a cada duas horas, patamar próximo ao da era pré­-UPP. “Há cada vez menos policiais nas ruas devido à crise e à permanência de milhares deles em gabinetes”, diz Ibis Silva, ex-co­mandante da PM.

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INDIGNAÇÃO – Manifestação pela paz no Rio: as balas perdidas nas favelas em guerra produzem cada vez mais vítimas (Guilherme Pinto / Extra/Agência O Globo)

A Caxias do bebê Arthur é exemplo clássico da segurança insuficiente. O Ministério Público estadual calcula em 1 690 o número ideal de agentes para seus mais de 880 000 habitantes; Caxias tem 781, menos da metade. A penúria do estado, que atrasa salários e corta verbas na área de inteligência policial, empurrou para o precipício as UPPs, um farol de esperança que já vinha sendo minado pelo mau planejamento. Os bandidos voltaram, audaciosos. Entre 2011 e 2016, o número de tiroteios nas favelas “pacificadas” pulou de treze para 1 555. No meio do fogo cruzado, a população se vê privada de refúgio. Para quem escapa da bala na barriga da mãe e vive em regiões pobres, a vida é dura. Crianças são alvejadas dentro de escolas (veja a reportagem na pág. 68). Questionado por VEJA, o governador Luiz Fernando Pezão tirou o corpo fora: “Precisamos aumentar o efetivo, mas também dependemos de mais ajuda da Polícia Rodoviária Federal no patrulhamento das estradas”. E pronto.

No fim da semana, Klebson e Claudineia eram hóspedes do primo Walter, a dez minutos do Lixão. Eles ainda não sabem quando voltarão para a casa de dois cômodos na favela, onde o quarto de Arthur está pronto, com móveis, fraldas e quinze roupinhas, sete pares de sapatinhos e mantas no armário. As frases iniciais do feto-­narrador do escritor Ian McEwan na obra citada no início desta reportagem são ironicamente objetivas: “Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem eu estou, o que me aguarda”. Adaptado à violenta realidade do feto baleado no Rio, o tom seria mais dramático: “Meu nome será Arthur. Estou dentro da barriga da minha mãe, esperando para nascer. Um metal pontiagudo acaba de entrar, rasgando meu pequeno corpo, e com espanto estou me perguntando: o que me aguarda?”.

Publicado em VEJA de 12 de julho de 2017, edição nº 2538

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