O roteiro foi seguido à risca. Do lado de fora do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cerca de 10 000 manifestantes vindos de várias cidades do país davam a impressão de que os brasileiros haviam saído às ruas na quarta-feira 15 para garantir a candidatura do ex-presidente Lula, condenado e preso por corrupção. Discursos apaixonados e protestos contra a Justiça foram captados pelas câmeras dos documentaristas do PT. Do lado de dentro do tribunal, porém, a realidade se impôs. Algumas horas depois de protocolado o pedido de registro da candidatura de Lula, a procuradora-geral Raquel Dodge ingressou com um pedido de impugnação da chapa petista. A Lei da Ficha Limpa impede que réus condenados em segunda instância possam disputar eleições.
Por sorteio, a decisão sobre o registro da candidatura de Lula caberá ao ministro Luís Roberto Barroso, um dos mais radicais defensores da aplicação da Ficha Limpa. No ano passado, durante um julgamento em que discutia a abrangência dos casos de inelegibilidade no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro chegou a fazer um desabafo: “A desonestidade foi naturalizada e muitas pessoas, muitas mesmo, perderam a capacidade de distinguir o certo do errado. O país está doente. Portanto, nós precisamos interpretar as leis que procuram trazer probidade e moralidade para o ambiente político”. Na mesma quarta-feira 15, o PT ingressou com um recurso no TSE questionando a escolha do relator. Até o fechamento desta edição, a presidente do TSE, ministra Rosa Weber, não havia decidido se acatava ou não a solicitação petista.
Ao pedido de impugnação da candidatura, Raquel Dodge anexou a prova considerada cabal para eliminar o ex-presidente das eleições: a certidão que confirma que Lula foi sentenciado a doze anos e um mês de prisão na Lava-Jato. A procuradora argumentou que o petista, por ser comprovadamente ficha-suja antes mesmo do início do processo eleitoral, não pode sequer ser tratado como candidato e deve ser impedido “de imediato” de fazer campanha ou de se valer do financiamento público.
Ao analisar o recurso, o ministro Barroso tem dois caminhos. No primeiro, pode negar individualmente o registro da candidatura de Lula, acolhendo o pedido do Ministério Público de que se trata de um candidato inelegível. Com isso, retiraria o petista da corrida presidencial sem consultar os demais integrantes do TSE. O segundo caminho, mais provável, é aguardar que cheguem todos os pedidos de impugnação contra o petista, abrir prazo para a defesa do candidato e, por fim, levar o caso para ser decidido pelo plenário da Corte eleitoral, formado por sete juízes. Os petistas sabem que a rejeição à candidatura é inevitável, mas querem ganhar tempo, esticando ao máximo a discussão jurídica. O objetivo é tentar levar a decisão para até 17 de setembro, o que provocaria uma situação bizarra. Lula não seria candidato, mas sua imagem apareceria nas urnas eletrônicas, por falta de tempo hábil para fazer a mudança para a foto do candidato real do PT, o ex-prefeito Fernando Haddad. É esse o ponto alto do roteiro traçado para tentar resgatar a imagem de Lula e transferir os votos para Haddad. Segundo a pesquisa Ideia Big Data, divulgada por VEJA, qualquer candidato indicado por Lula começa a corrida com pelo menos 9% de intenção de voto.
Ao pedir o registro da candidatura do ex-presidente, o PT apresentou o “Plano Lula de Governo”. Em 62 páginas, o nome dele é citado 225 vezes. Já Fernando Haddad e sua provável vice, Manuela D’Ávila, são ignorados. Preso há mais de 120 dias, Lula ainda mantém o partido sob seu comando e a seu serviço. A prioridade dada à sua batalha pessoal preocupa setores petistas. Eles temem que, quanto mais tarde se der a substituição de Lula por Haddad, mais difícil será a missão de transferir votos de um para o outro, já que haverá pouco tempo para tornar o ex-prefeito conhecido no país, principalmente na Região Nordeste, cujos eleitores podem levar o petista ao segundo turno, conforme a aposta do PT. Na quarta-feira, o ex-governador Jaques Wagner defendeu a tese de que a coligação colocasse imediatamente a campanha de Haddad na rua.
A sugestão de Wagner, que já foi cotado como substituto de Lula para concorrer à Presidência, apareceu numa reunião com governadores do PT e do PCdoB. Em público, quase nenhuma voz se levanta contra a submissão partidária a Lula. Além da pressão feita pelo próprio ex-presidente, conveniências pessoais de outras estrelas petistas ajudam a explicar por que o partido não formaliza logo a candidatura de Haddad. Os senadores Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias, por exemplo, usam a fidelidade inamovível a Lula como estratégia de suas campanhas e tentam pegar carona na popularidade do chefe para conquistar novos mandatos. Para os dois parlamentares, a eventual derrota do PT à Presidência será compensada pela vitória de ambos. É um plano arriscado. Partidos políticos já se prepararam para questionar a legalidade de Lula ser substituído por Haddad. A tese é a seguinte: se o tribunal não conhecer o registro da chapa, não poderá haver substituição de candidato, pois, no rigor da lei, nunca houve um candidato. Com isso, o PT seria punido duramente pela artimanha de levar tão longe a fantasmagoria da candidatura Lula.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2018, edição nº 2596