Os gigolôs da paz
Dados sigilosos do governo mostram quem são os guerrilheiros que se valeram do processo de cessar-fogo para assumir o controle do narcotráfico
O término de um conflito que, em meio século, provocou mais de 260 000 mortes é algo para comemorar. No fim de agosto passado, as Farc abandonaram o nome Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia para assumir a identidade de Força Alternativa Revolucionária do Comum. Assim, mantendo o acrônimo Farc, os guerrilheiros depuseram as armas e marcaram formalmente a transição de movimento armado para organização política. A ONU, como avalista das negociações, festejou. A União Europeia tirou o grupo da lista das organizações terroristas. E o papa Francisco foi à Colômbia para dar sua bênção a esse processo bem-vindo para a pacificação do país. No início de novembro, o ex-líder guerrilheiro Rodrigo Londoño, o Timochenko, foi anunciado como candidato à Presidência pelo partido Farc, nas eleições marcadas para 27 de maio deste ano. Tem poucas chances. Segundo as pesquisas, só 2% das intenções de voto e altíssima rejeição, de 63%. Mas as Farc, nos termos do acordo que foi selado, terão dez cadeiras garantidas no Congresso, em votação que ocorrerá em março.
O desfecho, no entanto, tem sido menos róseo do que a versão oficial, já que o cessar-fogo não conseguiu reunir a totalidade dos narcoguerrilheiros. Assim, as velhas Farc, aquelas que têm “Armadas” no nome, continuam existindo — e com um contingente e uma capacidade de se financiar maiores do que o governo do presidente Juan Manuel Santos admite. Documentos sigilosos do governo colombiano obtidos por VEJA revelam que as chamadas “dissidências” — como se denominam os guerrilheiros que não aderiram à paz e não entregaram as armas — chegam a 1 300 homens. É bem menos do que os 11 000 que as Farc chegaram a ter no seu auge, mas ainda assim é um contingente expressivo. “O governo começou falando em cinquenta dissidentes, depois chegou a reconhecer a existência de um total de 700”, diz o cientista político Carlos Montoya Cely, da Fundação Paz e Reconciliação, uma ONG de Bogotá que monitorou o cessar-fogo no país. Os documentos sigilosos revelam, portanto, que o contingente é 86% maior que aquele que o governo colombiano admite publicamente.
Até o fim de novembro, cerca de 7 000 homens e mulheres das Farc haviam sido desmobilizados. “Muitos dos integrantes do grupo que entregaram as armas, contudo, acabaram abandonando o acordo de paz e voltaram à ativa”, diz Bo Stenfeldt Mathiasen, diretor do escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) na Colômbia. Os dissidentes agora controlam a maior parcela de uma produção anual de cocaína que chega a 720 toneladas.
Os documentos elaborados pelas autoridades colombianas sugerem que, durante a negociação de paz, a parte que não aderiu ao acordo conseguiu abrir espaço para continuar com sua atividade criminosa. Em 2012, quando começaram as negociações pela paz, o governo da Colômbia exibia seu melhor desempenho no combate ao narcotráfico desde o início do Plano Colômbia, em 2000. A área de cultivo de coca era de menos da metade da registrada no início do programa, e a quantidade de cocaína produzida era 75% menor (veja o quadro abaixo). As Farc estavam vendo minguar sua principal fonte de receita. “O que permitiu o acordo de paz foi uma mudança profunda no cenário colombiano. Os guerrilheiros viram-se acuados e, muito inteligentemente, sentaram-se para conversar com o governo. Hoje, ao fim do processo, vejo que eles foram melhores negociadores do que nós”, disse a VEJA um ex-funcionário do governo colombiano que acompanhou as negociações de paz. Mesmo assim, o grosso da guerrilha foi desmobilizado e entrou para o campo da civilidade política, enquanto outro pedaço, estimado em 1 300 pessoas, se manteve na clandestinidade do narcotráfico.
Uma das reivindicações das Farc era o fim da aspersão de herbicida sobre as áreas de cultivo de coca, sob o argumento de que a substância causava danos ao meio ambiente. O governo atendeu ao pedido e reduziu em 53% o programa até sua extinção, em 2015. Com isso, depois de doze anos de queda, a produção de coca voltou a crescer, o que acabou beneficiando os chamados dissidentes. Em 2016, quando houve a assinatura do acordo de paz, a área cultivada chegou a 188 000 hectares, um aumento de 141% em relação a 2012. Sem disparar um tiro, o pedaço que não aderiu ao mundo da legalidade conseguiu driblar os esforços de mais de uma década para reduzir a produção de coca e o tráfico de seus derivados.
Em 2013, os investigadores da Unidade de Informação de Análises Financeiras (Uiaf), órgão equivalente ao Coaf brasileiro, fizeram uma projeção da fortuna acumulada pelas Farc ao longo dos anos. Os auditores estimaram o patrimônio da organização em 10 bilhões de dólares, entre receita de cocaína, imóveis, gado e minas. Ironicamente, a quantia é idêntica à despendida pelos Estados Unidos no Plano Colômbia, de combate à narcoguerrilha. O levantamento, de 156 páginas, jamais veio a público, talvez para não atrapalhar as negociações de paz, e as Farc sempre negaram possuir tal patrimônio. Até agora, uma força-tarefa com 300 pessoas montada pelo procurador-geral Néstor Humberto Martínez conseguiu identificar mais de 1,8 bilhão de dólares das velhas Farc. Recentemente, Martínez assinou um convênio com os Estados Unidos para rastrear os bens do grupo no exterior, sobretudo em paraísos fiscais.
Outro documento sigiloso do Ministério da Defesa, ao qual VEJA teve acesso, mostra a nova estrutura empresarial dos traficantes e o papel de seus líderes no negócio da cocaína. O governo colombiano identificou que o guerrilheiro Miguel Santanilla Botache, conhecido como Gentil Duarte, é quem está à frente das operações de cultivo e ampliação das áreas de plantação de coca. Com 132 outros membros das velhas Farc sob o seu comando direto, ele gerencia as lavouras e capitaneia os movimentos sociais, entre os quais a Coordenação Nacional de Cultivadores de Coca, Papoula e Maconha (Coccam, na sigla em espanhol). Inspirada nas organizações cocaleiras e nos sindicatos que levaram Evo Morales ao poder na Bolívia, a Coccam explora a conotação social da produção de drogas. A fase “industrial” do processo foi entregue a Néstor Gregorio Vera, que usa a alcunha de Iván Mordisco. Ele é quem cuida do processo de refino da cocaína, que depois é enviada às fronteiras com o Brasil e a Venezuela. Essa fase de comercialização e exportação é chefiada por Géner García Molina, conhecido como John 40.
Do ponto de vista da segurança para os colombianos, o acordo com as Farc foi claramente benéfico. Segundo dados oficiais, o número de homicídios no país caiu de 18 000, em 2005, para 12 000, em 2016. Os sequestros, uma das formas de financiamento e pressão política das velhas Farc, despencaram de 3 400 por ano, em 2000, para 188, em 2016. Mas os efeitos da explosão da produção de cocaína já são sentidos em toda a região. No México, o ano de 2017 registrou um recorde de homicídios — um efeito direto da disputa entre os cartéis pela divisão do bilionário bolo do tráfico de drogas para os Estados Unidos, onde as autoridades já reconhecem o crescimento no volume de cocaína que entra pela sua fronteira. Para o cientista político Román Ortiz, em Bogotá, um dos mais ativos observadores do conflito e do processo de paz, a Colômbia precisa de atenção e da colaboração dos países da região para evitar que seus erros tenham reflexos diretos em toda a América Latina.
Internamente, a Colômbia encontra-se diante de um paradoxo. De um lado, o aspecto positivo está na desmobilização da maior parte da antiga guerrilha e sua entrada na política. De outro, o aspecto negativo: houve aumento no potencial de produção de cocaína, um negócio para o qual evidentemente não faltarão interessados. Como lembra Mathiasen, do UNODC: “O tráfico de drogas remunera melhor que qualquer outra atividade legal no interior do país”. O grande desafio da Colômbia em 2018, portanto, será evitar que mais ex-combatentes voltem ao crime dispostos a viver como gigolôs da paz.
Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2018, edição nº 2564