“O consumidor pode ter um carro de qualquer cor, desde que ele seja preto.” A frase é do empreendedor americano Henry Ford, criador da montadora que leva o seu nome. Sua lógica partia de um princípio simples: a intenção de produzir um automóvel que agradasse ao comprador mas que também atendesse ao objetivo de redução de custos para a ampliação das vendas. Para tanto, era fundamental simplificar. Por mais de uma década, quem quisesse comprar o histórico Modelo T, lançado em 1908, teria de se contentar com a escolha cromática de Henry Ford. Mais de um século depois, a indústria automobilística disponibiliza inúmeras possibilidades de acessórios, opcionais e cores — ainda que a preferência recaia sobre o velho preto, branco ou prata — e consegue produzir modelos acessíveis aos bolsos menos favorecidos. A luta pela eficiência produtiva, entretanto, continua essencial, como sempre. Foi sob esse argumento que a Ford anunciou uma decisão surpreendente no fim de abril: deixará de vender sedãs e compactos nos Estados Unidos. A partir de 2020, os sedãs, como o Taurus, e também os compactos, como o Fiesta, não serão mais oferecidos nas concessionárias americanas. A empresa, seguindo a tendência do mercado consumidor, resolveu simplificar a sua linha de produtos e concentrar a produção nos modelos maiores, as picapes e os veículos utilitários esportivos, popularmente conhecidos como SUVs, sigla para sport utility vehicle.
Trata-se de uma reviravolta e tanto. Há dez anos, em meio à crise econômica, a Ford havia decidido justamente o oposto, ou seja, ampliar o seu investimento em carros menores e mais econômicos, que consomem menos combustível. A companhia chegou a receber uma linha de crédito de 5,9 bilhões de dólares, concedida pelo Departamento de Energia do governo dos Estados Unidos, para cumprir o seu projeto de ser a montadora mais verde do país. Passada a recessão, entretanto, os americanos — que tanto valorizam tudo o que é mega, do tamanho do automóvel ao tamanho do pacote de pipoca — estão menos preocupados com o custo de encher o tanque e voltaram à sua preferência pelos carros enormes.
A tendência não se restringe ao mercado americano. Os carros com cara de jipe, mas que quase sempre andam apenas no asfalto, conquistam adeptos em todos os continentes. Atualmente, em cada três veículos vendidos no mundo, um é SUV ou crossover (versão menos robusta do SUV, mas também com silhueta mais alta em relação aos sedãs). Nos EUA, esse segmento responde por quase metade do mercado automobilístico. A China, a maior vendedora de carros do mundo, deve chegar ao mesmo patamar dos Estados Unidos em breve. Até entre os europeus, que tradicionalmente sempre privilegiaram automóveis mais compactos, os grandalhões vêm ganhando admiradores. No Brasil, a categoria abocanha 20% do emplacamento de veículos novos, fatia similar à da Alemanha, da Índia e da França. Em três anos, o número deve subir para 30%. Para tirarem uma lasquinha desse sucesso, as fábricas agora lançam modelos pequenos com linhas inspiradas nos SUVs, mas que de SUV mesmo não têm quase nada. “Esses carros ocuparam o espaço das minivans e das peruas”, diz o engenheiro Roberto Bertolussi, professor do Centro Universitário FEI.
Todas as marcas, das populares às luxuosas, renderam-se aos anseios dos consumidores globais. Há SUVs da Jaguar, da Porsche e até da Maserati. A Fiat Chrysler, que já havia encerrado a produção dos sedãs Chrysler 200 e Dodge Dart nos EUA, também decidiu investir em modelos mais corpulentos, como o Alfa Romeo Stelvio e os novos Jeeps — e viu subir seus lucros. Há rumores de que a Chevrolet americana vai encerrar a produção do pequeno Sonic e do tradicional Impala.
Para as fábricas, não deixa de ser uma grande oportunidade. Produzir modelos SUV ou crossover custa pouco mais que produzir um hatch ou um sedã, mas a margem de lucro é mais gorda. O consumidor se dispõe a pagar um valor maior em nome do conforto, da sensação de segurança por dirigir um carro mais alto, do espaço adicional no porta-malas e de assentos cômodos para toda a família. Estima-se que o preço final para o consumidor de um SUV possa ser até 50% superior ao de um compacto ou sedã, englobando praticamente a mesma mecânica, equipamentos e acessórios. Além disso, apesar de mais modernos e eficientes em relação a um jipão do passado, os SUVs consomem mais combustível do que os carros menores, por causa do peso e da aerodinâmica. Nada disso, entretanto, parece preocupar os compradores — ao menos até que uma nova recessão bata à porta ou que o preço dos combustíveis volte a disparar. Por enquanto, a Ford e outras empresas parecem ter revisitado o bordão do pai da indústria automobilística moderna: “O consumidor pode ter um carro de qualquer modelo, desde que seja um SUV”.
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581