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Por causa de 20 reais

A polícia suspeita que pai tenha deixado menino dormir em cela de estuprador em troca de “bico” na lavoura do presídio, pelo qual receberia 20 reais

Por Ullisses Campbell, de Teresina
Atualizado em 6 out 2017, 06h00 - Publicado em 6 out 2017, 06h00

A Polícia Civil do Piauí suspeita que o agricultor Gilmar Francisco Gomes, de 49 anos, tenha deixado o filho de 13 anos passar a noite na cela do detento José de Ribamar Pereira Lima, de 52, em troca da promessa de que poderia trabalhar na horta da Colônia Agrícola Major César Oliveira. A lavoura é administrada pelos presos, que comercializam os produtos e, em época de colheita, contratam trabalhadores, a quem pagam 20 reais por dia. Ribamar cumpre pena de dezoito anos por ter estuprado um menor de idade. O filho de Gomes disse em depoimento à polícia que Ribamar lhe deu um par de sandálias Havaianas de presente e havia prometido comprar um videogame e um telefone celular no Dia das Crianças para ele e para o irmão mais novo. O garoto foi encontrado por agentes penitenciários na madrugada de domingo 1º na cela do estuprador, escondido debaixo da cama. “Testemunhas relatam que Gomes vivia pedindo um posto fixo na colheita. Todas as vezes que falava disso, o Ribamar reclamava da solidão que sentia à noite na cela”, diz o delegado Jarbas Lopes de Araújo.

Segundo o inquérito, Gomes e Sebastiana da Silva, sua mulher, foram no sábado, a convite de Ribamar, trabalhar na irrigação da lavoura com dois filhos, o garoto de 13 anos e o caçula, de 9. Em troca, cada um ganhou um prato de comida. Gomes é analfabeto e também já foi preso duas vezes por estupro. Ficou oito anos na cadeia, onde conheceu Ribamar. O casal tem outros quatro filhos e mora na zona rural do município de Altos, a 40 quilômetros de Teresina, cidadezinha com 38 000 habitantes e mais bicicletas do que carros nas ruas.

À tarde, o menino mais velho perguntou à mãe se poderia dormir no presídio. “Pra quê, menino?”, questionou Sebastiana. Gomes interveio e disse “com veemência”, segundo o inquérito, que o garoto ficaria lá, já que Ribamar, seu “compadre”, se queixava de solidão. Ficaram de apanhá-lo na manhã seguinte. O adolescente disse que na cela, já à noite, ficou vendo televisão, enquanto Ribamar permaneceu deitado na cama, de calção. Quando sentiu sono, o menino, também de short, deitou-se na cama ao lado de Ribamar. Às 2 da madrugada, numa inspeção de rotina, ele foi encontrado por agentes penitenciários.

O Ministério Público do Piauí abriu um procedimento para investigar denúncias de que crianças e adolescentes entram e saem da Colônia Agrícola Major César Oliveira — e muitas vezes dormem lá. VEJA visitou a casa penal e atestou que os portões do local ficam abertos o tempo inteiro, inclusive à noite, e que a ala das celas é separada da estrada que dá acesso ao prédio principal apenas por cercas baixas de arame farpado.

O Conselho Tutelar do Piauí pediu à Justiça que tirasse os meninos da guarda da família. O órgão suspeita que Gomes estivesse oferecendo os filhos para passar a noite com presos da colônia agrícola. “É muito triste, mas essas famílias lidam com a violência sexual sob outra ótica. Esse senhor, por exemplo, já estuprou duas mulheres. Todos os seus filhos sabem disso e tratam o assunto como se fosse a coisa mais natural do mundo”, conta a conselheira Maria Isabel Passos.

Na quarta-feira passada, por determinação da Vara da Infância e Juventude da Justiça do Piauí, Gomes e Sebastiana perderam a guarda dos quatro filhos menores de idade. Gomes, que cumpria pena em regime aberto, teve a prisão preventiva decretada e foi preso na tarde de quinta-feira.

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“Meu filho que pediu pra ficar lá”

“Não pediu”, rebate a mulher. “Você que insistiu”, disse ao marido. O casal falou a VEJA

“Por amizade” – Gomes e a mulher: preso é “da família”
“Por amizade” – Gomes e a mulher: preso é “da família” (Wilson Filho/)

Por que os senhores deixaram o filho no presídio junto com um adulto que cumpre pena por estupro?

Gomes — Ele pediu pra ficar lá.

Sebastiana — Ele não pediu. Você que insistiu (falando com o marido). Meu filho nem queria ficar lá. Nem eu queria deixar ele ficar. Quando eu estava chegando em casa, me deu um aperto no coração, mas não tinha como pegar ele de volta.

Por quê?

Sebastiana — Fiquei com medo que o Ribamar fizesse algo com o meu filho, que é muito magrinho e fraco. Mas não deu para eu voltar e comecei a chorar.

A senhora acha que o Ribamar fez algo com o seu filho?

Sebastiana — O meu filho diz que não. Mas achei esquisito os dois estarem dormindo na mesma cama, com o meu filho vestindo só um short. Ele nunca dorme só de short. Acho que ainda ia acontecer alguma coisa, mas os agentes penitenciários impediram.

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Alguns dos seus outros filhos já haviam dormido no presídio?

Gomes — Não, mas sempre tem crianças trabalhando na lavoura e, como elas ficam lá até tarde, acabam dormindo por lá. Mas não acontece nada.

Sebastiana — Minha filha de 15 anos pediu para dormir lá uma vez, mas não deixamos.

A polícia suspeita que vocês deixaram o menino lá em troca de favores.

Gomes — Isso não é verdade. O Ribamar dava as coisas pra minha família, mas não pedia nada em troca. Ele só queria ajudar.

Sebastiana — O Ribamar disse que queria que o menino dormisse lá porque ele se sentia muito sozinho à noite. Como ele sempre dava trabalho pra gente na lavoura da colônia agrícola, meu marido aceitou deixar o garoto lá. Ele prometeu nos dar emprego fixo na plantação.

Em troca do quê?

Gomes — Em troca da nossa amizade.

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Tem medo do que vai acontecer?

Sebastiana — A nossa vida desmoronou. Em uma semana tiraram os nossos filhos, nos acusam de “vender” uma criança, tomaram a nossa casa e agora estão dizendo que seremos presos (momentos após esta entrevista, Gomes acabou preso).

Gomes — Se eu tiver que pagar pelo que fiz, pagarei.

O senhor não sabia dos riscos que seu filho corria?

Gomes — Não, porque o Ribamar é meu compadre, como se fosse da família.

Mas o Ribamar, assim como o senhor, tem condenação por estupro de menores.

Gomes — Eu não sabia disso. Nem sei se é verdade. Queria mesmo pedir perdão pelo que fiz e gostaria, se possível, que alguém me arrumasse um bom advogado.

Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551

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