Durante 300 anos de sua história, o Brasil importou negros africanos para executar trabalho escravo. Calcula-se que pavorosos 4 milhões de escravos tenham atravessado o oceano à força, em condições miseráveis, e desembarcado principalmente no Rio de Janeiro. No auge do comércio, entre 1779 e 1831, um quarto das transações acontecia na região conhecida por Valongo — a ponto de um cais de pedra ter de ser construído no local, em 1811, para receber os navios negreiros. Enterrado pela história, como de resto boa parte dos rastros desse capítulo vergonhoso, o Cais do Valongo ressurgiu 200 anos depois de sua inauguração, durante as obras de recuperação da região do Porto para a Olimpíada. Preservado por uma equipe obstinada, que recolheu e arquivou resquícios do passado — os únicos vestígios materiais da chegada dos escravos ao Rio —, o Cais do Valongo permanecia meio escondido entre as atrações do Porto Maravilha até ser resgatado, no último dia 9, por uma homenagem enfim à altura de sua relevância: recebeu o título de Patrimônio Mundial da Unesco, por ser “memória de um período da história que não pode se repetir jamais”.
O Cais do Valongo é o primeiro patrimônio mundial no continente americano relacionado à escravidão, uma prática repugnante que o Brasil encampou e que, por cinquenta anos, fez do Rio a maior cidade africana desta parte do mundo. Dos 20 000 escravos que chegavam ao país a cada ano, 5 000 eram adquiridos por seus moradores por, em média, 100 000 réis (um décimo do preço de uma casa). Jean-Baptiste Debret, em suas pinturas do Brasil Colônia, retratou a “casa de engorda”, como eram chamados os entrepostos de africanos situados sobretudo na Rua do Valongo. A região, hoje central, era afastada da cidade e incluía ainda um cemitério e um abrigo para escravos doentes.
O desembarque em si ocorria no Porto, na atual Praça XV, ponto nobre do Rio imperial. Um decreto do vice-rei, marquês de Lavradio, ordenou então a construção de um cais no Valongo para os navios negreiros porque a visão dos negros desembarcados perturbava os moradores: “As pessoas honestas não se atreviam a chegar nas janelas; as que eram inocentes ali aprendiam o que ignoravam”. Logo no primeiro ano de funcionamento do novo cais, o número de escravos desembarcados subiu 20%, e assim prosseguiu, vigoroso, por vinte anos, até a proibição do tráfico negreiro. Em 1843, o decadente Cais do Valongo desapareceu de vez, soterrado sob um novo atracadouro, o Cais da Imperatriz, feito para receber a princesa Teresa Cristina, então noiva de dom Pedro II. Ele também desapareceu sob uma reforma urbanística.
No sítio arqueológico cavado em 2011 foram encontrados, além das pedras do cais, 1,2 milhão de artefatos relacionados à vida cotidiana, à religião e até à resistência dos escravos, acomodados em um galpão próximo. O Valongo tornou-se um monumento aberto à visitação, mas, sem vigilância, moradores de rua e usuários de droga abrigam-se no local, identificado por duas discretas placas informativas. Sujeito a enchentes, ainda está na mira dos tiroteios frequentes no vizinho Morro da Providência. Patrimônio da humanidade na categoria de “sítio histórico sensível”, a mesma do campo de concentração de Auschwitz e da cidade de Hiroshima, destruída por uma bomba atômica, o Cais do Valongo ainda não apagou de vez seu passado de tragédia e iniquidade.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2017, edição nº 2539