O carro da vez, aquele que caiu nas graças dos consumidores brasileiros, é o Renault Kwid. O estilo moderninho e o preço atrativo (a versão mais básica sai por menos de 30 000 reais) fizeram as encomendas da pré-venda superar em quatro vezes o volume esperado pela montadora francesa. Quem quiser comprar um agora terá de esperar até novembro para vê-lo na garagem. O preço baixo, sem dúvida, é o grande estímulo para o consumidor. Embora nos anúncios publicitários o modelo seja exibido como um utilitário esportivo compacto, ao vivo e em cores se percebe que a estratégia da companhia foi economizar nas peças e no custo. Exemplos: as rodas são presas por apenas três parafusos, em vez de quatro, e há um único limpador dianteiro de para-brisa. O espaço para os passageiros no banco de trás fica longe também daquele oferecido pelos jipes da moda.
Com tudo isso, o Kwid simboliza a nova realidade do mercado automobilístico brasileiro. Nos anos de euforia e ascensão social, as marcas acompanhavam as tendências dos Estados Unidos e Europa, lançando carros sofisticados e de última geração. Agora, as montadoras, como as indústrias de outros setores, buscam adaptar-se ao panorama do Brasil pós-recessão. A perspectiva para os próximos meses é de retomada gradual da economia, desemprego elevado e lenta recuperação do poder de compra das famílias.
Lançado por aqui em agosto, o Kwid já é vendido há dois anos na Índia. Sua origem se faz presente na composição do carro montado no Brasil: 40% das peças virão de produtores indianos. A razão é o custo. Mesmo com a altíssima carga tributária e com o preço de transporte, torna-se mais vantajoso trazer componentes de fora. É bastante provável que o Kwid substitua o Clio, antigo modelo de entrada da marca e que está uma geração defasado em relação ao que é vendido na Europa. Com a crise, muitas montadoras repensaram os planos para o Brasil, deixaram de atualizar os modelos e postergaram investimentos. A ordem agora é desenvolver carros mais adaptados à realidade financeira dos brasileiros, em vez de lançar modelos idênticos aos dos países ricos. A Volkswagen, por exemplo, fabricará uma geração nova do Polo, cuja assinatura de projeto é conjunta entre Brasil e Alemanha. Apesar dos investimentos de 2,6 bilhões de reais para a renovação de sua linha até 2020, a empresa ainda não pensa em aumentar o número de funcionários. “Em breve, vamos chamar de volta trabalhadores afastados temporariamente, mas não há perspectiva de criar mais vagas agora”, afirma David Powels, presidente da Volkswagen.
De fato, o baque dos anos anteriores ainda repercute na administração das montadoras. De 2013 até dezembro passado, o número de carros novos vendidos no Brasil teve uma queda brutal, de 3 milhões para 1,7 milhão. O primeiro semestre deste ano foi ligeiramente melhor que o mesmo período de 2016: os emplacamentos subiram 4,4%. Em paralelo, houve uma retomada das exportações, graças, em boa medida, à recuperação da economia argentina. De cada dez automóveis vendidos pelo Brasil no primeiro semestre, sete foram para o país vizinho. Além dos hermanos, as montadoras brasileiras vêm buscando novos clientes lá fora. “Conseguimos abrir espaço para exportações mais volumosas para Chile, Colômbia e México”, aponta Luiz Pedrucci, presidente da Renault brasileira. As importações, enquanto isso, seguem em declínio, reflexo da queda na demanda por modelos mais caros e também das barreiras tributárias erguidas no governo de Dilma Rousseff. A política chamada Inovar Auto deu isenções às montadoras que produzissem em território brasileiro e estabeleceu cotas para veículos feitos no exterior. Caso ultrapassassem o volume determinado de carros, as empresas teriam de pagar uma pesada sobretaxa no imposto de importação. Na última semana, a Organização Mundial do Comércio (OMC) condenou a Inovar Auto e outras políticas de incentivo à indústria nacional por considerá-las anticompetitivas. É a punição mais pesada que o Brasil já recebeu na OMC.
Não foi apenas a indústria automobilística que precisou se ajustar ao novo Brasil para sobreviver e crescer. Companhias de diversos setores procuraram adaptar-se e agora estão aptas para conquistar mercado. Dados do banco Itaú revelam que o índice de endividamento das empresas caiu pela metade e voltou para os níveis de 2013. A tendência é de melhora ao longo do próximo ano. O varejo conseguiu ajustar os estoques e prepara-se para viver uma ligeira alta no pós-crise. “Aqueles que fizeram os ajustes necessários estão colhendo os benefícios agora”, diz Tracy Francis, analista de varejo da consultoria McKinsey. Há uma melhora recente, refletida no ânimo dos investidores do setor. As cidades do interior vêm se recuperando mais rápido que as capitais — por isso é importante dispor de âncoras nessas regiões. Um exemplo é a Renner, varejista de moda que tem se destacado pelos bons resultados financeiros e planeja inaugurar setenta lojas neste ano. Para equilibrar os efeitos voláteis da demanda interna, a empresa está abrindo unidades em outros países — só em 2017, devem ser quatro no Uruguai. A Raia Drogasil, a maior rede de farmácias do Brasil, também se encontra em franco crescimento: neste ano, prevê inaugurar mais 200 lojas. A rede soube tirar proveito de fatores como a queda no preço dos aluguéis para abrir pontos em locais nobres e expandir suas vendas.
O cenário para a economia brasileira, no entanto, permanece nebuloso. O governo acumula déficits gigantescos e enfrenta dificuldades crescentes para aprovar as reformas. A recessão pode ter ficado para trás, mas a retomada será vagarosa. Ainda assim, para os empresários que conseguem se ajustar aos novos tempos, o Brasil continua a ser um país de grandes oportunidades.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546