República de bananas
Trump distorce o conteúdo de uma conversa com o dono do 'New York Times', deflagra um bate-boca com a imprensa e dá aos EUA ares de uma republiqueta
Presidentes americanos sempre se tornam mais afáveis com a imprensa depois que deixam o cargo. Quando ainda estão na Casa Branca, reclamam de que suas ações não recebem cobertura suficiente ou adequada, enquanto os jornalistas buscam pautar-se pelo que é do interesse público. Com Donald Trump, essa relação complicada alcançou níveis inauditos. O mais recente ataque do presidente contra os veículos de imprensa (apenas os que lhe são críticos, claro) ocorreu na manhã do domingo 29, em uma mensagem no Twitter. Nela, ele relatou um encontro com o dono do jornal The New York Times ocorrido no dia 20.
“Tive um bom e interessante encontro na Casa Branca com A.G. Sulzberger. Passei muito tempo falando sobre esse monte de fake news que vêm sendo divulgadas pela nossa mídia e como elas se mostram transformadas na frase ‘inimigos do povo’. Triste!” Os eleitores de Trump não tiveram dificuldade em compreendê-lo. Para eles, o presidente deu uma lição ao dono do maior jornal do mundo, cujas reportagens se mostram impiedosamente críticas à atual administração. Ao tentar agradar a seus apoiadores republicanos, contudo, Trump foi desonesto em vários sentidos.
Arthur Gregg Sulzberger, de 37 anos, conhecido como A.G., assumiu a direção do jornal no início deste ano. Ele é o sexto Ochs-Sulzberger a comandar a operação desde que a família comprou o título, em 1896. A reunião entre ele e Trump aconteceu a pedido da Casa Branca, na condição de que seria em off. No vocabulário do jornalismo, isso significa que seu conteúdo não poderia ser usado em reportagens futuras do jornal. Encontros assim são corriqueiros em qualquer país democrático, pois podem ajudar a facilitar o entendimento entre presidentes e jornalistas, com vantagens para ambos os lados. Mas Trump quebrou a regra que ele mesmo tinha seguido ao divulgar o conteúdo da conversa. “O presidente escreve o que está pensando e sentindo na hora, por ímpeto. Ele não teve experiência anterior em política e está tendo de aprender a lidar com a imprensa só agora”, diz a cientista política Martha Joynt Kumar, da Universidade Towson, em Maryland.
Se Trump é um amador aos 72 anos, A.G. comportou-se como um profissional aos 37. Duas horas depois do tuíte do presidente, ele publicou um comunicado com sua versão do que acontecera, seguindo suas anotações e as de James Bennet, responsável pelos editoriais do Times, que também comparecera ao encontro. Para eles, a elucidação se fez necessária, uma vez que o presidente rasgara o acordo de off.
Segundo os jornalistas, o convite oficial foi aceito porque eles estavam preocupados com a “retórica profundamente perturbadora” usada por Trump contra a imprensa. A.G. disse ter exposto a Trump que sua retórica “divisiva e crescentemente perigosa” estava pondo em risco a vida de jornalistas, sobretudo em países com democracia mais frágil. Disse ainda que os jornais tiveram de colocar guardas armados em frente a seus escritórios por causa das crescentes ameaças a jornalistas. O presidente ficou espantado ao saber que as redações não tinham seguranças até então. Trump mostrou-se orgulhoso por ter popularizado a expressão fake news e disse que outros países as estavam proibindo. A.G. salientou que esse tipo de censura só acontece nas ditaduras, em que governantes autoritários não toleram um escrutínio independente de suas políticas.
Mesmo para um jornal como o New York Times, não há como não sair arranhado de um ataque feito por um presidente que despreza a essência do trabalho da imprensa. Após a nota de A.G., Trump publicou mensagens atacando o veículo. “Não vou permitir que nosso grande país seja vendido por críticos a Trump na decadente indústria de jornais. O falido New York Times e o Washington Post da Amazon não fazem nada além de escrever histórias negativas, quando há conquistas positivas. E eles nunca vão mudar”, tuitou o presidente.
Chama atenção que os Estados Unidos, sempre tão ciosos da liberdade de imprensa, tenham chegado a um ponto tão próprio de repúblicas de bananas em que o presidente e a imprensa batem boca. Durante o governo anterior, o então presidente Barack Obama vivia às turras com a Fox News, a emissora que lhe fazia críticas sistemáticas. Obama, incomodado com o viés oposicionista do veículo, decidiu que não lhe daria mais entrevistas. Os republicanos e a direita em geral censuraram seu comportamento, alegando que um presidente americano não poderia ter uma reação autoritária e tão avessa à liberdade de imprensa. Imagine a gritaria que não teriam feito se Obama tivesse desferido ataques abertos à emissora, tal como Trump faz contra o Times e o Post.
Com reportagem de Thais Navarro
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2018, edição nº 2594