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Samba da militância doida

Veto de ativistas negros à cantora parda que interpretaria Ivone Lara em um musical expõe o autoritarismo de movimentos descolados da sociedade brasileira

Por Caetano Vilela*
Atualizado em 4 jun 2024, 16h58 - Publicado em 8 jun 2018, 06h00

“O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.”

Mário de Andrade, em Macunaíma

Mais uma vez, ativistas do movimento negro conseguiram, com táticas de perseguição, censura e intimidação, interferir em uma produção cultural que não atende a suas demandas coloristas e raciais. Mas agora atingiram alguém que definitivamente tem seu “lugar de fala”, uma mulher que é considerada irmã da causa afro-brasileira: a cantora Fabiana Cozza, parda na certidão de nascimento, filha de mãe branca e pai negro.

Fabiana Cozza não segurou a pressão dos ativistas contra a indicação do seu nome a um espetáculo musical sobre a vida de dona Ivone Lara, no qual interpretaria a própria, a pedido da família da sambista. Em uma carta de renúncia e em um áudio dolorido e emocionado, deve ter se sentido o próprio Macunaíma quando disse: “renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”.

Ao contrário do que se observa na obra de Mário de Andrade, que idealizava a conquista de uma identidade cultural brasileira através do passado das nossas tradições indígena e mestiça, o que se vê hoje no debate dos grupos identitários é um verdadeiro samba do crioulo doido das pautas raciais, bancadas por um movimento desunido em suas reivindicações — e que vai do policiamento fashion a brancos que usam turbante (acusados de apropriação cultural) à censura de espetáculos que recorrem ao blackface (atores brancos pintados de preto), pouco importando se a branca com turbante perdeu os cabelos por causa de uma quimioterapia ou se o espetáculo se mostra sensível à causa negra.

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Confrontos recentes foram responsáveis pelo cancelamento de alguns espetáculos nos palcos de São Paulo. Isso aconteceu, por exemplo, em 2015 com um dos grupos mais premiados da cidade, a companhia teatral Os Fofos Encenam, que cumpria temporada desde 2003 com A Mulher do Trem, peça do século XIX que recorria ao blackface. A montagem estava muito longe de ser uma apologia do racismo, mas a maquiagem foi o suficiente para que o grupo e os produtores fossem hostilizados nas redes sociais, acusados de nazismo e racismo, por ativistas do movimento negro — que julgaram a peça somente por uma foto de divulgação no Facebook. Convidados pelo grupo a assistir à montagem, eles se recusaram. Seguiram exigindo que se cancelasse a produção, o que acabou acontecendo depois de um acalorado debate promovido pela instituição que contratou o espetáculo.
A Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) comprou uma briga que não era sua em 2016 ao programar a peça Exhibit B, do sul-africano Brett Bailey, figura polêmica na África e na Europa, que selecionaria atores negros brasileiros para ficar encarcerados como em um zoológico. Não adiantou o autor explicar que a peça é crítica e antirracista; a produção foi cancelada. Em 2017, a MITsp fez um mea-culpa e programou peças e debates cujo eixo central era a questão do negro e do racismo, com representantes do Brasil e da África do Sul.

O ataque a artistas e produções culturais é uma luta de nicho, segregada e autofágica

A atriz e diretora Georgette Fadel, depois de doze anos encenando Entrevista com Stela do Patrocínio, teve de cancelar a minitemporada que a peça faria na Biblioteca Mário de Andrade, no ano passado, por ser uma mulher branca representando uma poeta negra. Confrontada aos gritos, em cena, pelo movimento negro, Georgette Fadel interrompeu a apresentação, abriu o debate e convidou a todos para discutir o tema e os caminhos que a montagem deveria tomar. Ali foi decidido que a sua participação na peça deveria se encerrar, em prol de uma maior “representatividade racial”.

Atacar e confrontar ostensivamente espetáculos, artistas e pessoas públicas que não seguem a cartilha da causa negra tem sido a tática encontrada por esses movimentos para que continuem a existir. A novidade é que nem mesmo artistas e instituições engajados em causas desse ativismo escapam da violência de suas ações. Na gritaria, ganha quem fala mais alto. Quem perde é o público de todas as raças e credos. E no Brasil, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos (onde tudo termina nos tribunais), quem se sentiu prejudicado ou ofendido não pode nem invocar a Primeira Emenda.

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Não assistimos a uma pressão desses movimentos — desprestigiados e sem representatividade no cotidiano político atual — em favor de políticas públicas educativas com o mesmo vigor com que eles atacam artistas e produções culturais. Talvez seja assim porque reivindicações mais substantivas não chamam a atenção da mídia, ou talvez porque o debate sobre cotas raciais, por exemplo, já esteja assimilado pela sociedade — nos últimos anos de governo petista, muito se avançou em políticas de representatividade afro-brasileira, em escala pública e privada. Sem um avanço no debate sobre a desigualdade e a violência racial, sobra o confronto. E, na política do confronto, nada escapa: um jornalista renomado que solta uma piada racista infeliz é tão culpado pela opressão do negro na sociedade quanto um candidato à Presidência que definitivamente não se preocupa com o fato de ser racista. Quando tudo passa a ter o mesmo peso e valor, não existe erro ou acerto, e o que se vê é um distanciamento da sociedade brasileira — em todos os matizes da sua pele — em relação a esse tipo de ativismo. Convencer a sociedade de que nosso passado caricato, racista e homofóbico não dialoga mais com o século XXI ainda é um esforço constante — esforço que precisa abranger também muitos movimentos de inclusão de minorias, que deveriam repensar a sua forma de atuação.

Esse tipo de ativismo de classe média e cosmopolita acredita que sua luta, centrada no ataque a artistas, produções e instituições culturais, o torna mais visível e relevante. Na verdade, porém, essa é uma luta de nicho, segregada e autofágica. Seus militantes agem como guerrilheiros urbanos, buscando o conflito e ignorando o respeito ao próximo. Cobram uma dívida social, que, embora reconhecida, não pode ser paga; e, mesmo que o fosse, eles não saberiam o que fazer com o valor recebido.

* Caetano Vilela é encenador e iluminador de teatro e ópera. Branco, gay, nascido na periferia da Zona Leste de São Paulo, neto de índios de Mato Grosso e Pernambuco, ele acredita ter “lugar de fala” nesse debate

 

Publicado em VEJA de 13 de junho de 2018, edição nº 2586

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