Tá dominado: mais organizado, futebol brasileiro sobra na América do Sul
Libertadores ou Copa do Brasil? País faz valer em campo a disparidade econômica em relação aos vizinhos
Até pouco tempo atrás, o narrador Galvão Bueno exclamava que determinado clube era “o Brasil na Libertadores”, apelando a um senso de patriotismo tolo, como se algum torcedor fosse apoiar seu rival apenas por representar a mesma nação. A Globo nem transmite mais a competição — retomará o controle em 2023 —, mas, se assim fosse, o locutor teria de abandonar o bordão, não por falta de participantes nacionais, mas por excesso. Pelo segundo ano seguido, as quartas de final terão cinco equipes brasileiras. As últimas edições, ambas vencidas pelo Palmeiras, tiveram finais entre compatriotas (Santos e Flamengo foram os vices). A tendência é de manutenção da hegemonia e as explicações são essencialmente econômicas.
A próxima fase da Libertadores terá cara de Copa do Brasil: Palmeiras x Atlético-MG e Flamengo x Corinthians. O Athletico-PR encara o Estudiantes, da Argentina, e o outro duelo será 100% argentino, Talleres x Vélez. Ou seja, uruguaios, chilenos e colombianos não tiveram a menor chance. Os números do domínio chocam: o Palmeiras tem 100% de aproveitamento, 33 gols marcados (média de 4,1 por partida) e só três sofridos. O Flamengo também está invicto e coleciona goleadas. Nem nos tempos do Santos de Pelé ou do Flamengo de Zico havia tanto desequilíbrio.
Como se sabe, o Brasil também atravessa grave crise econômica, mas nada comparado aos vizinhos. O cenário se reflete na bola. O grande marco ocorreu em 2011, com o fim do chamado Clube dos 13, que deu aos clubes o direito de negociar individualmente os direitos de transmissão. Os valores inflacionaram. A consultoria Ernst Young calculou em 152% o crescimento na receita dos times brasileiros entre 2011 e 2020. O economista Cesar Grafietti destaca outro momento de virada. “As boas gestões de Palmeiras e Flamengo, a partir de 2016, puxaram toda a concorrência para cima”, diz. “Com mais organização, o Brasil faz valer a disparidade natural para um país de população sessenta vezes maior que a do Uruguai.”
Outro aspecto crucial diz respeito à renovação do pé de obra. “Os clubes europeus buscam atletas cada vez mais jovens e o Brasil, por seu tamanho e tradição, consegue renovar melhor a sua produção”, explica Grafietti. Os clubes brasileiros ocupam hoje o papel de fascínio que antes pertencia a Boca Juniors e River Plate. Recentemente, a estrela chilena Arturo Vidal preferiu o Flamengo a Buenos Aires, por um salário de mais de 1 milhão de reais mensais. Exemplos não faltam: são mais de oitenta estrangeiros na Série A, sendo vinte argentinos — ou seja, além de produzir mais talentos, o Brasil também consegue fisgar os de lá. O êxito de programas de sócio-torcedor e da fórmula de disputa do Brasileirão, a vinda de treinadores de fora e a melhora nas estruturas dos estádios, na esteira da Copa do Mundo de 2014, foram outros impulsionadores.
A realidade incomoda os vizinhos, mas e a Conmebol? Aparentemente não, pois foi a própria confederação que ampliou o número de vagas para o Brasil — já foi de apenas uma e agora pode chegar a nove. A lógica é simples e já se vê há anos na Liga dos Campeões da Europa: com mais gigantes no topo, maior a receita (e mais previsíveis os placares). “O afunilamento ao redor de grandes marcas é uma tendência global”, diz o especialista em marketing esportivo Bruno Maia. “Gostemos ou não, não há alternativa dentro de uma lógica liberal. É o retrato do capitalismo, que talvez tenha demorado um pouco mais a chegar ao futebol.” O domínio se repete na Copa Sul-Americana e também no cenário de seleções, já que o Brasil passeou, invicto, nas Eliminatórias para a Copa do Mundo. Cabe agora uma reflexão: isso é bom ou ruim? Para Palmeiras e Flamengo, é ótimo.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798