Temporada de cachorro louco
Como funcionam as gangues de redes sociais que intimidam e difamam quem critica Lula, Doria e Bolsonaro, os três presidenciáveis mais fortes nesse campo
Eles não querem conversa, querem briga. Agem em bando nas redes sociais, quase sempre contra um único indivíduo — alguém que postou uma crítica contra o político ou o partido que eles apoiam. Costumam incluir votos de que o adversário “morra”, “apodreça” e sugestões para que explore práticas eróticas heterodoxas. Ultimamente, a defesa dos nomes que poderão concorrer à eleição de 2018 vem ocupando a discussão, mas, como o objetivo não é debater, imagens, frases e memes de apelo fácil e entendimento imediato fazem as vezes de “argumento”. Cartazes virtuais com dizeres como “Feminazi boa é feminazi morta” fazem grande sucesso por não requererem maiores esforços de leitura nem raciocínio, dois anátemas nas redes sociais. Com métodos assim, capazes de gerar “engajamento” imediato — ao menos entre os que já tendem a simpatizar com a ideia —, as gangues virtuais engrossam as fileiras das tropas hiperpartidárias e hiperagressivas incumbidas de duas missões: enaltecer seu candidato e massacrar quem falar mal dele.
No cenário político atual, há três presidenciáveis que, de longe, dispõem de maior poder de foto: o ex-presidente Lula, o deputado Jair Bolsonaro e o prefeito paulistano João Doria. Nenhum deles coordena as gangues virtuais nem estimula abertamente suas táticas de intimidação, mas também nunca se ouviu deles uma palavra para dissuadir seus apoiadores das práticas de hostilização. O fato é que, se mais de um ano antes da eleição presidencial o ambiente já está tão contaminado, são péssimas as perspectivas para o pleito de 2018.
No mês passado, o Instituto de Internet da Universidade de Oxford divulgou um estudo feito em 28 países intitulado “Troops, trolls and troublemakers: a global inventory of organized social media manipulation” (Tropas, troladores e encrenqueiros, um inventário global da manipulação nas redes sociais). A pesquisa, que incluiu o Brasil, concluiu que a atuação das tropas cibernéticas — definidas como grupos que tentam manipular a opinião pública por meio das redes sociais — deixou de ser uma forma de guerrilha marginal para se transformar em prática política padrão.
O estudo analisou grupos patrocinados ou estimulados por governos, forças militares, partidos e movimentos políticos. Um exemplo citado de gangue virtual inserida na estrutura do governo é a plataforma digital Somos+, criada no Equador na gestão de Rafael Correa — em que os inscritos recebiam relatórios com informações potencialmente prejudiciais ao então presidente e eram estimulados a defendê-lo nas redes. Já na Rússia, as gangues cibernéticas alinhadas ao Kremlin são comandadas por partidos e integrantes da sociedade civil — suas táticas incluem, por exemplo, a divulgação na internet de listas com nomes de ativistas de direitos humanos, classificados pelos organizadores como “os mais vis inimigos” da nação. No México, ao longo deste ano, jornalistas foram desacreditados e tiveram suas páginas inundadas por robôs comandados por tropas virtuais patrocinadas por agentes federais cada vez que publicavam reportagens críticas ao governo. A facilidade de atingir o alvo — a um clique de distância — é um dos principais trunfos dos novos exércitos virtuais, afirma o estudo.
No Brasil, o exército petista foi o primeiro a aderir à guerrilha na internet, em 2007, sob o comando do jornalista Franklin Martins. A estratégia era ambiciosa: derramar dinheiro público em blogs defensores do PT e utilizá-los como ferramenta para organizar a militância. O partido foi pioneiro também no uso de robôs destinados a derrubar páginas críticas ao então presidente. Quando o dinheiro do governo secou, com ele se foi a maioria dos blogueiros pagos. Ainda hoje, porém, os seguidores do partido não se furtam a ir para o front quando se sentem convocados. O procurador Júlio Marcelo de Oliveira, que atuou no processo responsável pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, teve notícias falsas divulgadas sobre ele por blogs ligados ao PT e recebeu dezenas de mensagens hostis no Twitter. “Sua morte prematura não seria algo ruim”, dizia uma das mais carinhosas.
O deputado Jair Bolsonaro (PSC) — citado nas redes como possível candidato à Presidência da República em 2018, ao lado de Lula e do prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB) — tem o mais raivoso dos três exércitos virtuais ligados a políticos. A professora da Universidade Federal do Ceará Lola Aronovich, militante feminista, é alvo diário de afrontas desferidas por bolsonaristas no Twitter e no Facebook por críticas feitas no ano passado ao deputado, que ela considera machista e preconceituoso. Um seguidor de Bolsonaro, que atende pelo pseudônimo de “Inês Bolsonaro”, chegou a criar em nome da professora uma falsa conta por meio da qual enviava mensagens de cunho sexual a usuários do Twitter, incluindo menores de idade. O senador Humberto Costa, vítima da mesma turma, acionou a polícia depois que seu número de telefone passou a ser adicionado quase diariamente, e à sua revelia, a grupos de WhatsApp criados para agredi-lo. Costa descobriu que um dos grupos era liderado pelo ex-ator pornô Alexandre Frota, militante pró-Bolsonaro. O senador move uma ação judicial contra Frota e pede indenização de 50 000 reais.
A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), conhecida pela defesa de pautas de direitos humanos, tornou-se um dos primeiros alvos dos bolsonaristas quando o deputado, em uma discussão, afirmou que não a estupraria porque ela “não merecia”. Em fevereiro deste ano, um site apoiador do deputado, intitulado “Faca na Caveira”, divulgou uma montagem de fotos da filha da petista, menor de idade, afirmando que ela era “drogada” e “anoréxica”. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal.
Na outra ponta da briga, a jogadora de vôlei Ana Paula Henkel, que usa o Twitter para falar sobre política e criticar Lula e o PT, já perdeu a noção de quantas vezes teve suas contas invadidas por militantes petistas que utilizam perfis falsos. Depois de denunciar as investidas, passou a ter seu computador monitorado 24 horas por dia por um policial que rastreia responsáveis pelas ações. “Muitas vezes, recebo ataques desferidos por esses falsos perfis antes mesmo de me posicionar sobre um tema”, diz a atleta.
Na comparação com Lula e Bolsonaro, o prefeito João Doria é o que faz uso das redes com maior profissionalismo. Recebe conselhos quase diários de estratégia do publicitário Nizan Guanaes e tem quatro funcionários cultivando sua “persona” virtual. Quanto ao seu exército cibernético informal, Doria nunca se dirige diretamente a ele, mas ao menos em duas ocasiões não hesitou em atiçar as feras contra jornalistas que o criticaram. Arthur Rodrigues, da Folha de S.Paulo, publicou em junho uma reportagem da qual o prefeito não gostou. Doria se queixou no Facebook e chegou a marcar a página pessoal do repórter, oferecendo-o à fúria de seus seguidores. Dias depois, publicou um vídeo, dessa vez contestando uma reportagem da rádio CBN que afirmava que sua gestão lançava jatos d’água contra moradores de rua. Nesse caso, o prefeito não citou a autora da reportagem, mas seus apoiadores se encarregaram de identificá-la. Vasculharam suas redes sociais, resgataram fotos pessoais e postagens antigas para divulgar, em texto de autoria oculta no site Jornalivre, que se tratava de uma “militante de extrema esquerda”.
O link foi amplamente compartilhado pelo Movimento Brasil Livre (MBL), que atua em favor de Doria nas redes sociais. A notícia gerou quase 60 000 interações e alcançou 4,4 milhões de usuários só no Facebook. O MBL também atirou contra o cicloativista Daniel Guth, chamando-o de “ciclofascista”, antes de postar a notícia falsa de que ele era filiado ao PT. O pecado de Guth: ser crítico contumaz do plano de Doria de aumentar a velocidade nas marginais, em São Paulo.
Os pesquisadores de Oxford que estudaram a situação em 28 países chegaram a uma conclusão surpreendente. Descobriram que as gangues virtuais são tão mais fortes quanto mais consolidada é a democracia dos países em que atuam. Isso ocorre porque em regimes autoritários esses grupos agem a soldo de governos, o que tende a limitar seus efeitos. Em ambientes sem censura, à medida que os embates crescem, aumenta o número de pessoas alcançadas por eles e também a adesão aos grupos. Por isso, em uma escala de zero a cinco que avalia a “densidade organizacional” das tropas cibernéticas, somente os Estados Unidos tiram a nota máxima. Outro dado reforça essa percepção: os únicos países em que não se percebem gangues virtuais atacando adversários políticos são Venezuela, Síria, Vietnã e Israel. Como, exceto pelo último, nenhum deles pode ser considerado exemplo de democracia, é compreensível que registrem apenas a presença de tropas cibernéticas pró-governo, como detectaram os pesquisadores de Oxford.
Ainda que a pesquisa sugira que as gangues virtuais são subproduto da democracia, o professor do curso de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo e responsável pelo projeto Monitor do Debate Político no Meio Digital, Pablo Ortellado, enxerga nuances menos otimistas no fenômeno. Para ele, ações de grupos de ataques virtuais são saudáveis apenas em ambientes nos quais o antagonismo pode existir sem maiores sobressaltos — o que, na sua opinião, não é o caso do Brasil de hoje, fortemente polarizado. “Nesse ambiente, não há espaço para discussão. Por isso é difícil imaginar que a proliferação de ataques contra detentores de opiniões contrárias às dos grupos possa trazer resultados positivos para o país e para a política”, diz o pesquisador.
Esse ambiente de informações simplificadas, enviesadas ou simplesmente falsas tem estrita relação com o que o cientista político Rubens Figueiredo chama de “queda drástica do custo da participação política” — fruto do entendimento de que é possível dispensar-se da leitura, das discussões e dos exercícios de atividade partidária. “O único custo é movimentar um dedo em frente ao computador.” Assim, afirma, “o debate qualificado, que sempre esteve restrito a poucos, torna-se ainda mais superficial”.
É fato que nem Lula nem Doria nem Bolsonaro jamais ordenaram publicamente nenhum ataque contra seus críticos. Mas o estudo de Oxford mostra um dado alarmante. Com base em exemplos de outros países, revela que, uma vez que partidos e movimentos dados a estimular intimidações on-line tomam o poder, eles tendem a replicar lá o modelo seguido antes da ascensão. Para quem já achava o presente assustador, a conclusão não tem nada de alentadora.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2017, edição nº 2541