Tolerância zero ao AI-5
É estarrecedor que, transcorrido mais de meio século da decretação do Ato Institucional Nº 5, ainda seja preciso levantar-se contra o seu espectro
O limite da tolerância é a intolerância. Assim, só pode haver indignação, repúdio, repulsa diante de sugestões de retomada do AI-5 a pretexto de se frearem supostos radicalismos da esquerda. Por duas vezes, em pouco menos de um mês, tal proposta indecente partiu das hostes governistas. Primeiro foi o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República. No fim de outubro, veio à tona uma entrevista concedida pelo parlamentar em que ele defendia a reinstalação daquele hediondo expediente para conter o “inimigo interno”. A reação, demolidora, obrigou Eduardo a pedir desculpas. Na segunda-feira 25, durante uma coletiva em Washington, foi a vez de o ministro da Economia, Paulo Guedes, sair-se com esta: “Não se assustem se alguém pedir o AI-5”. Àquela altura, Guedes comentava recentes discursos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em que ele convocava a militância a “seguir o exemplo do povo do Chile” — país onde protestos contra o governo já chegaram a causar mortes. Um dia depois, o ministro tentou remendar, dizendo que o Brasil não teme manifestações, porém insistiu: “Acho que deveríamos praticar a democracia responsável”. No entanto, o estrago — inclusive no campo econômico, no qual Guedes precisa funcionar sempre como porto seguro — estava feito. “Se tiver manifestações de rua, a gente fecha instituições democráticas?”, provocou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “O AI-5 é incompatível com a democracia”, declarou Dias Toffoli, presidente do STF. “Ninguém menciona AI-5 se não tiver simpatia por ele. É porque está ou no imaginário ou na agenda”, resumiu a economista Elena Landau, ex-diretora do BNDES (na gestão FHC).
É estarrecedor que, transcorrido mais de meio século da decretação do Ato Institucional Nº 5 — assinado pela ditadura em 13 de dezembro de 1968 e que vigoraria até 31 de dezembro de 1978 —, ainda seja preciso levantar-se contra o seu espectro. Isso porque, ao promulgá-lo, o regime militar instaurou todos os instrumentos que lhe garantiriam eliminar pessoas e organizações que pudessem, na sua visão, pôr em risco “a autêntica ordem democrática”. O AI-5 levou ao fechamento do Congresso, à censura, à suspensão do habeas-corpus. Em decorrência dele, a tortura se tornou uma política de Estado. Deveria, portanto, estar sepultado.
A resposta de VEJA à medida foi contundente. A capa da edição de 18 de dezembro não trazia sequer título: mostrava apenas o presidente Costa e Silva sentado em um Congresso de cadeiras vazias. A foto tinha sido tirada algum tempo antes, contudo não poderia haver melhor ilustração para o silêncio que os generais queriam impor. Não por acaso, a revista foi apreendida nas bancas e passou a ser submetida à vigilância de censores, que permaneceu até 1976. No momento em que, com uma irresponsável insistência, o fantasma do AI-5 — a mais perfeita tradução da intolerância de uma ditadura que durou 21 anos — volta a assombrar o país, com perigosos sintomas de plataforma de governo, VEJA reitera que não tolerará ameaças à democracia.
Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663