Fundar um partido político é tarefa relativamente simples. Basta redigir um estatuto (um conjunto de normas a ser seguidas pelos futuros filiados e dirigentes) e reunir 500 000 assinaturas de apoio. Depois, deve-se enviar o pedido de registro à Justiça Eleitoral, que inicia a fase de checagem dos dados apresentados. Esse processo, ao menos em teoria, é rigoroso. As fichas dos eleitores são separadas por região e encaminhadas aos cartórios para conferência. Os técnicos analisam o material, cruzam os dados cadastrais e verificam a autenticidade das assinaturas, uma a uma — tarefa que pode durar meses. O partido Solidariedade passou pelo escrutínio. Em 2013, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu conceder o registro à legenda, apesar da descoberta pelos ministros da corte de “problemas pontuais” em algumas fichas. Problemas, sabe-se agora, que não tinham nada de pontuais. Eram, na verdade, indícios de uma enorme fraude.
Para conseguirem o número de assinaturas necessárias, os criadores do Solidariedade recorreram à falsificação. Um vídeo obtido por VEJA revela que milhares de “apoiadores” do partido eram falsos. O pessoal do partido teve acesso ao cadastro de desempregados do Ministério do Trabalho e, usando identidades reais, colocou-os como se fossem apoiadores do Solidariedade. Funcionava assim: um grupo ligado ao atual presidente do partido, o deputado Paulinho da Força, recebia cópia das guias preenchidas por desempregados que queriam obter o seguro-desemprego. Com os dados, os falsificadores entravam em ação. No vídeo, com dois minutos e vinte segundos de duração, um homem aparece explicando como o trabalho era feito. “Estamos aqui com fichas do seguro-desemprego para dar continuidade ao partido Solidariedade”, diz ele. Na sequência, ele preenche a ficha de criação do partido com as informações de um desempregado. Com o auxílio de uma prancheta de luz, ele copia a assinatura: “Jogamos essa folha aqui sem assinatura (mostra a ficha de apoio) e pegamos a folha com a assinatura da pessoa (mostra a cópia da guia do seguro-desemprego). Vem a transparência e conseguimos executar a assinatura, com 90% de qualidade”, arremata o falsificador.
O seguro-desemprego é um benefício administrado pelo Ministério do Trabalho, pasta em que Paulinho da Força exerce influência desde o governo Lula e que também foi alvo de um escândalo recente sobre venda de registros sindicais. Foi do ministério que saiu o cadastro de desempregados, como informa o vídeo. “Mandaram mais (guias do seguro-desemprego) para nós, umas 10 000 aí, para a gente estar assinando”, conta o falsificador, deixando evidente que aquele lote não era o primeiro pacote de documentos que lhe fora entregue. E prossegue: “Esse é o trabalho que fazemos aqui no Solidariedade. Estamos exaustos. É dia e noite fazendo isso aqui para o partido sair”. Uma segunda pessoa, que provavelmente gravava as imagens, comenta em tom de protesto: “Para ganhar 200 contos”. E o falsificador completa: “Pessoas grandes estão por trás disso”. Mas não diz quem são elas.
O falsificador não aparece nas imagens, e sua voz foi propositalmente distorcida para proteger sua identidade. Portanto, é natural considerar a hipótese de a denúncia ser parte de uma armação para prejudicar o partido. Ampliando a imagem, porém, a reportagem de VEJA identificou a vítima do golpe e reconstituiu a fraude. É a professora Camila Souza, que mora em Suzano, no interior de São Paulo. Em dezembro de 2011, ela foi demitida da escola em que lecionava inglês e deu entrada no pedido de seguro-desemprego no posto do Ministério do Trabalho que funciona na cidade. Hoje, ela está desempregada. Ao ver sua assinatura na ficha de criação do Solidariedade, Camila se espantou. “Nunca assinei isso. Nunca mexi com partido nenhum. Minha assinatura foi falsificada”, disse. No cartório eleitoral de Suzano, a ficha falsificada de Camila está no mesmo pacote de outras 256 fichas de apoio ao Solidariedade — possivelmente, também falsas.
A ficha de Camila — que aparece no vídeo a que VEJA teve acesso — passou pelo crivo dos funcionários da Justiça Eleitoral e foi considerada regular no processo que viabilizou o registro do partido. Levando em conta o que relatam os falsificadores no vídeo, outros milhares de pessoas também tiveram sua assinatura falsificada como apoiadoras da legenda. Durante a tramitação do processo de registro do Solidariedade, a Procuradoria-Geral Eleitoral chegou a defender uma investigação mais rigorosa diante dos indícios de fraude que já haviam surgido. Em Brasília, por exemplo, os técnicos encontraram fichas com nomes de dezenas de servidores públicos e até de um ministro do Tribunal de Contas da União. Durante a checagem, descobriu-se que as assinaturas eram falsas. Um detalhe chamou a atenção dos fiscais: tanto os servidores quanto o ministro eram filiados a um sindicato comandado pela Força Sindical.
Diante do que se sabe hoje, pode-se imaginar o que aconteceu, mas, na época, a Justiça Eleitoral aceitou a explicação de que tudo se resumia a “problemas pontuais” e deferiu o pedido de registro. As investigações, no entanto, prosseguiram pelo lado criminal. Em março passado, o Ministério Público do Distrito Federal denunciou seis pessoas como responsáveis pela falsificação das fichas dos servidores públicos. Uma delas, Francisca Gleivaní Gomes Silva, é sogra do deputado Paulinho da Força. Segundo os promotores, ela recebeu os dados dos servidores que estavam no cadastro do sindicato da categoria, preencheu as fichas de apoio e falsificou as assinaturas, usando exatamente o mesmo método descrito no vídeo.
O Brasil tem 35 partidos políticos registrados na Justiça Eleitoral. Poucos têm identidade, programas definidos e uma linha ideológica mais ou menos clara, como o PT e o PSDB, que governaram o país nas últimas duas décadas. A maioria das demais legendas funciona como plataforma de negócios. Depois de criado, o Solidariedade se alinhou a um grupo notório que reúne siglas como PR, PP, PRB, PTB e Pros — agremiações que vivem de mercadejar apoio a presidentes da República e, em tempos de eleição, a candidatos. Em troca de seus segundos na propaganda eleitoral, cobram espaços generosos na máquina pública. Quase sempre conseguem. Não há discussão de programas. Fecham-se negócios.
O Solidariedade tem onze deputados federais, 21 deputados estaduais, 65 prefeitos e 1 500 vereadores. Tem direito a mais de 20 milhões de reais do fundo partidário por ano e a 44 segundos na propaganda de TV. O Solidariedade e o grosso desses partidos de aluguel tendem a se juntar à campanha de Geraldo Alckmin (PSDB). Esse arco de alianças vai render ao tucano seis minutos diários a mais no tempo de propaganda eleitoral — um empuxo e tanto em qualquer campanha, mas que também pode se transformar numa grande dor de cabeça pela simples razão de que esses partidos são quase sinônimos perfeitos de escândalos.
Comprovada a falsificação do Solidariedade, dirigentes do partido e servidores do Ministério do Trabalho que manipularam as guias do seguro-desemprego podem responder a processos criminais. Um ex-ministro do TSE ouvido por VEJA entende que, demonstrada a fraude, o partido pode ser punido com a cassação do registro, a medida mais extrema que a lei eleitoral prevê. Em maio, a Polícia Federal realizou buscas no gabinete do deputado Paulinho da Força. Ele é suspeito de comandar o esquema de corrupção no Ministério do Trabalho. Procurado por VEJA, o parlamentar disse que desconhece qualquer fraude e responsabiliza prováveis desafetos: “Alguém certamente montou esse vídeo para tentar denegrir a imagem do partido”. O vídeo foi entregue à Procuradoria-Geral Eleitoral pelo advogado e ex-deputado João Caldas da Silva, que até 2015 ocupou o cargo de secretário-geral do próprio Solidariedade.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2018, edição nº 2594