Em A Morte de Ivan Ilitch, pequena obra-prima de Lev Tolstói publicada em 1886, um respeitado jurista de São Petersburgo, na iminência do fim, muito doente, dá-se conta de que toda a sua vida pregressa não fizera sentido algum — a carreira pública de sucesso, os rapapés da sociedade, o casamento de fachada, o relacionamento com os filhos. Tudo havia sido artificial e desmedido. Tudo, à exceção do tempo de meninice. Das páginas do conto: “Como viveste antes, bem e agradavelmente? — perguntou a voz. E ele começou a examinar na imaginação os melhores momentos da sua vida agradável. Mas, fato estranho, todos estes momentos melhores de uma vida agradável pareciam agora completamente diversos do que pareceram então. Tudo, exceto as primeiras recordações da infância. Lá, na infância, existia algo realmente agradável, e com que se poderia viver, se aquilo voltasse”. A busca de Ivan Ilitch pelo lirismo dos primeiros anos, e apenas ela, é que autoriza algum paralelo do personagem de Tolstói com Gabriel Jesus, o centroavante de Tite na Copa da Rússia. Como Ilitch, na noite anterior à viagem para Teresópolis, onde iniciaria a travessia a caminho de Sochi, o craque de 21 anos foi beber do berço. Num raro dia de folga, entre o título inglês pelo Manchester City e a apresentação à seleção, ele esteve no Jardim Peri, bairro pobre da Zona Norte de São Paulo, onde desembarcou ainda de fraldas, no colo da mãe, recém-separada, que cuidava sozinha de quatro crianças. “E quanto mais longe da infância, quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas eram as alegrias.” É de Ilitch, mas poderia ser de Jesus, olhando para o começo de tudo, pés descalços no Peri.
Formalmente loteado pelo empresário Peri Ronchetti, dono da fazenda fincada aos pés da Serra da Cantareira, o Jardim Peri foi criado em 1951. Seus primeiros moradores vieram de regiões vizinhas, como a Casa Verde e o Peruche, fugindo das constantes enchentes às margens do Rio Tietê. Na década de 70, depois da canalização do Córrego Guaraú, deu-se a expansão desenfreada do novo arrabalde paulistano, colando-se à mais conhecida Vila Nova Cachoeirinha. As ladeiras íngremes logo foram dominadas por milhares de casas e barracos construídos uns por cima dos outros. Nas palavras de quem o conhece bem, o Peri é o tipo de lugar onde você pode pedir 1 quilo de açúcar emprestado, amistosamente. Mas é bom que o devolva depressa, antes de cair na boca do povo. As alegrias, insignificantes e duvidosas, são poucas. Mas há o futebol. O bairro abriga uma porção de times de várzea, as atrações solitárias da vida social nos fins de semana. Os garotos costumam ser vistos correndo atrás de uma bola, independentemente da inclinação do chão. Em tempo de Copa do Mundo, manda a tradição, as ruas são pintadas de verde e amarelo. Numa fotografia que já rodou o mundo, Gabriel Jesus aparece, aos 17 anos, em 2014, tingindo o meio-fio com as cores brasileiras. Veste a camisa rubro-negra de um time local, o União do Peri. Nas costas, o apelido de então, Tetinha, porque costumava dizer que tudo era “teta”, era fácil, quando se tratava de empurrar a bola para o gol. Hoje, próximo da calçada que o menino coloria, há um imenso mural com o adulto Gabriel, pago por um de seus patrocinadores. Entre um ponto e o outro, uma história redentora.
A chegada de Gabriel Jesus ao Peri só aconteceu em decorrência de uma traumática ruptura familiar. No fim da década de 90, a mãe de Gabriel, Vera Lucia Diniz, mudou-se para lá depois de se separar definitivamente do marido. Ela escolheu o local por ali estarem os parentes próximos, que serviriam de apoio na árdua missão de criar sozinha o quarteto: Emanuele, Felipe, Caíque e o caçula, que viria a ser bom de drible. “Quando fiquei sozinha, fui trabalhar na faxina. O Gabriel era pequeno e, como ficava fora o dia inteiro, quem cuidava dele era a irmã mais velha”, recorda-se Vera. “Naquela época, eu tinha que pegar qualquer serviço que aparecesse.” Depois da separação, Fernando, de quem Gabriel herdou o nome do meio e o sobrenome, teve pouquíssimo contato com a família — ele viu o filho jogador apenas três vezes antes de morrer, em 2011. Mas, para os filhos de Vera, a ausência de uma figura paterna não foi sentida. “Ela foi pai e mãe ao mesmo tempo”, gosta de repetir Gabriel. Seu irmão Felipe, conhecido como Binho, afirma que a mãe foi o zagueiro mais difícil que tiveram de enfrentar. “Morar num bairro como o Peri te dá a chance de ver tanto o caminho certo quanto o caminho errado. Graças à dedicação da nossa mãe, escolhemos o certo.” E o que os garotos faziam quando a mãe estava fora? Divertiam-se, apesar da dureza, chutando qualquer coisa que rolasse.
Em tempos de jogadores pré-fabricados, cooptados logo cedo por grandes clubes, o futebol de Gabriel Jesus foi forjado nos paralelepípedos e na terra batida do Peri. “Tínhamos um time aqui na rua e sempre jogávamos valendo alguma coisa. Nosso troféu era um refrigerante”, diz Higor Braga, o amigo inseparável. “Mas ele brincava demais, hein? O Gabriel queria dar chapéu já dentro do gol.” Antes de chegar ao Palmeiras, aos 15 anos, idade considerada avançada para um garoto que queria seguir a carreira de jogador, ele só havia passado pelo Pequeninos do Meio Ambiente, time infantil de um projeto social, e por equipes de várzea. “O Gabriel é a inspiração do bairro, é um espelho. As crianças olham pra ele e pensam: ‘O camisa 9 da seleção saiu do meu bairro’ ”, resume com lucidez Fabio Lucio, o Fabinho, outro companheiro desde os tempos do futebol sem grife. Estar na companhia da família e dos amigos mais próximos é tão imprescindível que, quando foi contratado pelo Manchester City, Gabriel levou consigo três dos melhores amigos (Higor, Fabinho e Rodolfo), além do irmão Felipe e da mãe, Vera. Foram eles os responsáveis por tornar a gelada cidade industrial inglesa mais parecida com as ruas do Jardim Peri. “É um jeito de fazer que ele esqueça um pouquinho a pressão do futebol, dos treinos”, diz Fabinho.
O trio inseparável — Higor, Fabinho e Rodolfo — é conhecido como “bonde”, na gíria da juventude brasileira de periferia (Neymar também levou seu bonde para Paris). No domingo de Páscoa deste ano, os três foram escalados por Gabriel para distribuir 1 600 ovos de chocolate às crianças do bairro — a ação foi ordenada pelo craque por meio do WhatsApp. Da Inglaterra ele acompanhava as fotos, emocionado ao perceber na gurizada o menino que foi, porque “lá, na infância, existia algo realmente agradável, e com que se poderia viver, se aquilo voltasse”. Não que a vida de hoje lhe seja ruim, muito ao contrário — e aqui é fundamental tê-la quase como um contraponto à amargura de Ivan Ilitch. Ao piscar no smartphone a mensagem da mãe com as felicitações pela convocação para a Copa, Gabriel se dizia em “estado de choque”, apesar de já ter uma medalha de ouro olímpica no pescoço. Ele respondeu: “Obrigado por fazer eu realizar o meu sonho de criança. Te amo muito. Não sei o que seria de mim sem você”. Inspirou-se em seu próprio peito, em que se leem os versões iniciais de um rap dos Racionais MCs, A Vida É Desafio, que, verdade, lhe cai melhor do que um Tolstói. “Sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo / Quando pivete, meu sonho era ser jogador de futebol, vai vendo.” Vai vendo.
Depois de Guerra e Paz (1865, mais de 1 200 páginas) e de Ana Kariênina (1877, mais de 800 páginas), com a consagração de uma obra inimitável, parecia já não haver novos caminhos para Lev Tolstói (1828-1910). Mas veio uma pequena joia, o conto A Morte de Ivan Ilitch, de 1886. Há nele o livre pensar de Ivan Ilitch, jurista renomado, que no leito de morte reflete sobre a futilidade de suas conquistas pessoais e profissionais. O personagem procura um sentido para a existência e só o enxerga no tempo da inocência. Diz Flávio Ricardo Vassoler, doutor em letras pela USP, consultor de VEJA para esta edição especial da Copa da Rússia: “Ivan Ilitch e Gabriel Jesus estão em partes opostas da ampulheta como adultos, mas têm um encontro de sonho na infância”.
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2018, edição nº 2586