A ciência avalia o uso de Cannabis medicinal no tratamento da Covid-19
Canabinoides seriam incluídos nas terapias contra a doença e suas sequelas, como lapsos de memória. Até agora, os resultados são positivos
“Descobri que estava com Covid-19 em dezembro, perto do Natal. Tive sintomas leves, como tosse e cansaço, e fiz o tratamento em casa. Mas, depois de um mês, notei que a minha memória estava com uma espécie de delay, meu raciocínio, lento, e eu tinha dificuldade para lembrar palavras.” O relato da advogada previdenciária Débora Macedo, de 48 anos, é compartilhado por milhões de pacientes que passaram pela fase aguda da doença e agora apresentam sequelas. A chamada Covid longa afeta até mesmo pessoas que tiveram sintomas leves, como a advogada. Ainda não há tratamento específico, tampouco se sabe por quanto tempo as condições persistirão. Por isso, a ciência busca novas possibilidades de tratamento para a Covid e também suas heranças. Nesse caminho, surgiu uma possibilidade um tanto quanto inusitada: a Cannabis medicinal.
Com 198 milhões de consumidores no mundo — 1,5 milhão no Brasil —, a maconha é a mais popular das drogas. Restrita ou ilícita na maioria dos países, ela é também a mais estudada para uso medicinal. A planta possui diversos fitocanabinoides, sendo os mais conhecidos o canabidiol (CBD) e o THC, que interagem com receptores presentes no organismo. “É fundamental afastar o efeito farmacológico do canabidiol do recreativo. Acreditamos que o efeito anti-inflamatório da substância ajude a controlar a tempestade de citocinas que pode ocorrer em pacientes com Covid e possivelmente atenuar os sintomas persistentes”, diz o cardiologista Edimar Bocchi, diretor do Núcleo de Insuficiência Cardíaca e Dispositivos Mecânicos para Insuficiência Cardíaca do Instituto do Coração, de São Paulo. A instituição coordenará o primeiro estudo clínico do Brasil com canabidiol para o tratamento de pacientes com Covid longa. A pesquisa, com duração prevista de três meses, contará com a participação de 290 pacientes que apresentam fadiga muscular, insônia, ansiedade, depressão e alterações cognitivas por pelo menos noventa dias após o diagnóstico. Há outro teste clínico semelhante em andamento nos Estados Unidos. Os ensaios são importantes porque buscam comprovar o que já foi observado na prática clínica e em laboratório. “Temos bons indícios de que pode ser uma opção eficaz de tratamento, mas precisamos do estudo para comprovar”, diz José Bacellar, CEO da Verdemed, empresa canadense de Cannabis medicinal parceira do estudo no InCor.
Logo após notar os problemas de cognição, Débora procurou ajuda médica e começou o tratamento com Cannabis medicinal. “Já melhorei 90%”, conta. A advogada faz uso do medicamento há cerca de seis meses. “Vemos melhora nos pacientes e, do ponto de vista teórico, faz sentido, porque a Cannabis fornece uma neuroproteção importante, além de uma diminuição na inflamação cerebral”, diz o neurocirurgião Pedro Pierro, que trata pacientes com Covid longa, incluindo a Débora.
O composto de maior interesse dos cientistas é o canabidiol, encontrado em pequeno volume no caule e na folha da erva Cannabis. Ele não é psicoativo nem tóxico. Não causa dependência nem altera o raciocínio. Mas, em níveis controlados, até mesmo o THC, responsável pelo efeito psicoativo da planta, tem benefícios farmacológicos. Um estudo publicado na revista Frontiers in Pharmacology mostrou que o composto atenuou a inflamação nos pulmões de cobaias, resultando em 100% de sobrevivência. Testes em laboratório mostram que os canabinoides reduzem a produção de citocinas inflamatórias associadas ao agravamento da doença. Por isso, seu uso também está sendo avaliado para tratar casos leves, moderados e graves de Covid. A expectativa é de que o resultado dos trabalhos seja publicado em breve. “A Cannabis entraria como uma das possibilidades terapêuticas da Covid-19”, diz a especialista em radiologia e diagnóstico por imagem Paula Dall’Stella, pioneira na prescrição de Cannabis medicinal no Brasil. As descobertas não representam um passe livre para o uso recreativo da droga. Fumantes regulares de maconha correm mais risco de complicações da Covid-19 e o impacto terapêutico não está associado ao uso de produtos com canabidiol encontrados fora do Brasil. A Cannabis medicinal é segura e tem baixo potencial de toxicidade — já existem remédios aprovados para o controle da epilepsia em crianças e da esclerose múltipla quando o paciente não reage a outros tratamentos. Agora, além dos testes contra a Covid-19 e a Covid longa, ela vem sendo usada experimentalmente no tratamento de ansiedade, dor crônica, insônia, esquizofrenia, depressão e Alzheimer. Enfim, a planta que gera o mais famoso dos entorpecentes também produz um poderoso remédio.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751