A real influência da fé nos tratamentos médicos
Novo documento lançado por médicos brasileiros ratifica e detalha a importância da espiritualidade para os pacientes
Você tem fé? Frequenta cultos religiosos? Costuma superar rapidamente a tristeza quando alguém machuca seus sentimentos? Perguntas assim, digamos, não propriamente científicas, podem se tornar comuns na rotina dos consultórios médicos do país. A Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), referência na medicina brasileira, publicou o mais completo documento sobre a relevância da espiritualidade e de atributos como a compaixão e o perdão no tratamento de diversas doenças. A ideia é que, ao investigar a vida do paciente, o profissional dê a mesma dimensão para questões clássicas, como hábitos alimentares, e aquelas associadas à espiritualidade. “É uma abordagem que pode prevenir problemas e capaz também de detectar causas de enfermidades que não são rastreadas por exames convencionais, como dores crônicas, insônia e até depressão”, diz Álvaro Avezum, diretor da Socesp e cardiologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
O levantamento brasileiro traz 368 referências de estudos internacionais sobre o assunto feitos nos últimos anos. Um dos trabalhos mais interessantes foi desenvolvido pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, com cristãos. Ele atestou que ir à igreja ao menos uma vez por semana pode reduzir a mortalidade de 20% a 30% em um período de até quinze anos. O ponto básico para explicar o papel da fé na saúde é associá-lo ao modo de ver a vida. “Esses pacientes costumam ser mais otimistas e aderir ativamente às terapias”, diz Sidnei Epelman, oncologista pediátrico do Hospital Infantil Sabará e presidente da Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer. Uma das possíveis explicações lógicas é a associação que a crença pode ter com hormônios. A prática religiosa está ligada a secreção de endorfina e dopamina, substâncias do prazer e bem-estar.
A espiritualidade é uma questão essencial para a maioria das pessoas: cerca de 80% da população mundial está ligada a alguma religião ou acredita em um poder superior. O ponto do novo documento é ajudar os profissionais de saúde na identificação dos pacientes que desejam ou precisem dessa nova abordagem. O trabalho sugere questionários de aferição de comportamento (veja exemplo ao lado). Um deles aborda especificamente a questão da capacidade de perdoar, forte característica dos que têm fé. A postura faz bem ao coração — a mágoa gerada pelo ressentimento deflagra stress crônico. Por defesa, o organismo estimula a quantidade de hormônios como o cortisol e a adrenalina, que, em excesso, são nocivos. Eles aceleram uma reação que eleva a atividade inflamatória do corpo. O resultado podem ser doenças como arteriosclerose, trombose, infartos, derrames e problemas autoimunes.
Há mais de um século, o canadense William Osler (1849-1919), pensador da medicina moderna, cunhou uma frase inspiradora: “A fé despeja uma inesgotável torrente de energia”. Contudo, até muito recentemente, medicina e espiritualidade não conversavam. Hoje, nove em cada dez universidades médicas nos Estados Unidos incluíram na grade curricular o tema espiritualidade e saúde. No Brasil, ainda engatinha. Convém, portanto, deixar de lado os preconceitos, mas também os exageros religiosos, e crer.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716