‘Covid longa’: o drama de quem teve a doença e segue com sintomas
Milhões de pessoas que tiveram Covid-19 continuam sofrendo com a doença. É o próximo desafio a ser enfrentado no controle do vírus
O crescente aumento de casos de Covid-19 provocado pela variante Delta do coronavírus preocupa autoridades de saúde do mundo todo. A pergunta que se faz: depois do certo alívio proporcionado pelo avanço da imunização, estaríamos entrando em uma nova onda, desta vez causada por uma cepa do Sars-CoV-2 mais transmissível? Não há resposta à questão, até porque, como já se aprendeu ao longo de um ano e meio, a complexidade com que a pandemia se desenrola impede certezas no que diz respeito à sua evolução. Contudo, é possível afirmar que neste momento vive-se, sim, uma terceira onda, mas ela é de outra natureza. É formada por milhões de pacientes que passaram pela fase aguda da Covid-19 mas permanecem com sintomas que por vezes exigem tratamentos tão ou mais intensos do que os ministrados durante a manifestação clínica do vírus. Por essa razão, milhares perderam o emprego, interromperam os estudos, tornaram-se um fardo para a família. Para esse grupo, a vida realmente deixou de ser o que era antes. Ficou muito pior. Eles são vítimas do que está sendo chamado de Covid longa, condição que não pode, de forma alguma, ser desdenhada, apesar da esperança no horizonte.
Por se tratar de algo novo — mais um relacionado ao Sars-CoV-2 —, o fenômeno não tem nome oficial nem definição de características. Porém, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), só nos primeiros meses de 2021 o termo Covid longa gerou 1,5 milhão de menções nas redes sociais, o que dá a ideia de quanto o assunto despertou interesse. Diante da ausência de designação oficial, o quadro pode ser descrito como a persistência da manifestação ou piora de sintomas, surgimento de novos sinais ou a combinação entre ambos depois do quadro agudo. Não está estabelecido por quanto tempo. Na tentativa de padronizar definições e tratamentos, a OMS criou, em fevereiro, uma comissão de especialistas de diversas áreas e países e também de pacientes ou familiares. O médico intensivista brasileiro Regis Goulart Rosa integra o grupo. Nesta primeira etapa, o objetivo é uniformizar o padrão de pesquisa a ser aplicado na investigação científica para que os dados sejam obtidos por uma mesma metodologia, assegurando solidez. “O trabalho resultará em diretrizes para que governos e autoridades de saúde adotem ações que identifiquem e tratem a condição”, diz Regis, pesquisador do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
As sequelas da Covid-19, ressalte-se, deixaram de ser um problema individual e se tornaram uma bomba-relógio para os sistemas de saúde. De acordo com as pesquisas mais recentes, o quadro é preocupante, pelo número de pessoas atingidas, pela duração dos sintomas e pelo impacto social e econômico que pode causar. Tem-se, com esses três itens, o desenho de outro drama prestes a desafiar a todos. Sinais de que o cenário era preocupante começaram a surgir de investigações feitas com pequenos grupos de diferentes países. Sua gravidade e extensão, porém, ficaram claras com a divulgação, há duas semanas, do maior levantamento feito até hoje. Publicado na EClinicalMedicine, do reputado grupo The Lancet, o estudo teve a participação de 3 762 pessoas, de 56 países. Todas haviam tido Covid-19 e apresentavam sintomas por mais de 28 dias depois da doença. O primeiro impacto: 91% dos indivíduos precisaram de mais de oito meses para se recuperar. Nada menos do que 203 sintomas foram elencados, 66 presentes por mais de sete meses. Eles estão associados a dez sistemas do organismo, significando que o estrago causado pela enfermidade pode ser sistêmico, atingindo não somente um ou outro órgão. Esse tipo de sequela foi registrado com maior frequência depois de seis meses. Após esse período, os sintomas mais comuns foram fadiga, mal-estar após esforço e sinais de fundo neurológico: disfunção cognitiva, dificuldades sensório-motoras e de memória. Além de outros problemas, como dor de cabeça e alucinações, depressão e diarreia.
Há uma contribuição brasileira relevante na busca por mais informações. Está em andamento um estudo da Coalizão Covid-19 Brasil (aliança formada pelo Hospital Israelita Albert Einstein, HCor, Hospital Sírio-Libanês, Hospital Moinhos de Vento, Hospital Alemão Oswaldo Cruz, BP — A Beneficência Portuguesa de São Paulo, Brazilian Clinical Research Institute e Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva) destacando a evolução de 1 532 pacientes que estiveram internados por nove dias, em média. Os resultados preliminares, obtidos com base na avaliação de 1 006 participantes, revelam que a mortalidade geral pós-alta em seis meses foi de 7%, enquanto nos indivíduos que necessitaram de ventilação mecânica o índice chegou a 24%. Sintomas psiquiátricos também foram registrados: 22% tinham ansiedade, 19% depressão, e stress pós-traumático, 11%.
Até agora, não há perfis que indiquem quem terá Covid longa. Caso tenha, também não se sabe por quanto tempo e que gênero de sintomas apresentará. Passando pela condição estão pacientes jovens e idosos hospitalizados em estado grave ou moderado e jovens e idosos que nem sequer necessitaram de internação. “Temos visto pessoas entre 18 e 30 anos com sintomas importantes seis meses depois da doença”, afirma o neurologista Eli Faria, do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. A probabilidade de ter Covid longa também nada tem a ver com as condições clínicas do indivíduo anteriores à Covid-19. Quando manifestou a doença, no fim de fevereiro, o engenheiro Walter Iorio, de 65 anos, apresentava bom condicionamento físico graças à prática de exercícios. Da Covid-19, nem sintomas sentia. No entanto, ao levar a mulher, Aurea, também infectada, ao Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, acabou ele internado. Quando soube que Iorio testara positivo, o médico resolveu submetê-lo a exames só para verificar se estava tudo bem. Não estava. Seus pulmões encontravam-se comprometidos. Ao final, ficou quarenta dias hospitalizado, catorze na UTI. Hoje, o engenheiro vai religiosamente três vezes por semana ao hospital para fazer reabilitação. Ele ainda precisa de oxigênio para dar conta do exercício na esteira.
A realidade atual continua desafiadora. Nos Estados Unidos, sobra vacina e falta gente querendo se imunizar. Na Inglaterra, o fim das restrições foi comemorado como se não houvesse amanhã. Enquanto isso, a variante Delta se espalha e faz aumentar de novo os casos nos dois países. Ao mesmo tempo, uma multidão de pessoas sofre com as sequelas e a ausência de cuidados. Para elas, o caminho para a volta às atividades é a reabilitação. “Em média, doze a vinte sessões são suficientes para o paciente se recuperar”, explica Milene Ferreira, gerente médica do Centro de Reabilitação do Einstein. Trata-se de um recurso que precisa estar disponível a todos. Afinal, como diz o médico Regis, de Porto Alegre, não se trata apenas de sobreviver, “mas sobreviver com qualidade de vida”. É desafio que a moderna medicina enfrentará com empenho, para que então a página da Covid-19 possa ser virada.
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748